terça-feira, fevereiro 13, 2007

do curió tirei a resposta para minha vidinha besta (conto existencialista de auto-comiseração)



‘A moléstia do mundo é que faz a gente ser bacana e honesto!’. Vixe, como o meu pai sabia das coisas! Quando eu era pequeno e o escutava falar isso pra tudo quanto era gente, achava que ele tava ficando era gagá.
‘Mas que porra é essa de moléstia que faz a gente olhar pro próprio rabo e enfiar ele no meio das pernas pensando no quanto a gente é besta na vida?’

Ai que tristeza de ser besta!

No meio do jantar, o papai levantava o garfo assim como se fosse uma cimitarra e gritava:
‘Hoje eu vou meter esse garfo nos cornos da comida!’.
E a gente dava risada. A mamãe é que não gostava muito dessa história. Tinha razão né? Era ela que fazia a comida e o papai falava dos cornos da comida dela todo santo dia.
Mas a mamãe também tinha umas manias que deixavam a gente bem com cara de tacho. Coisas bacanas, eu diria agora, como falar pelos cotovelos uns negócios que ninguém entendia e depois gritar ‘agora chega!’ e ficar calada nos dias seguintes só se comunicando por bilhetes com os filhos, com o marido e com o mundo inteiro. Quem dera as pessoas adotassem isso na vida delas e deixassem a gente sossegado por uns dias. Alguma coisa que funcionasse assim:

Dona Arminda: ‘Ai Pedrinho eu hoje acordei com uma dor no ciático que tá me deixando louca, mas tudo bem, eu sei que isso é uma maneira de deus nosso senhor me testar e descobrir que eu sou mesmo uma santa que aguenta uma vida inteira de dor nas costas, na bacia, no cocuruco da cabeça -que foi aonde os médicos me tiraram aquele tumor no ano passado- sem reclamar um isso que seja, né Pedrinho?’
Pensamento do Pedrinho: ‘Calma Pedro Bó que a velha vai surtar daqui a pouco e daí ela só vai voltar a falar merda na segunda-feira que vem.’
Dona Arminda: ‘Cê sabe que eu sou assim mesmo, uma coitada resignada que a vida não é nada bolinho mas graças a deus que eu não reclamo de nada porque já pensou se eu fosse começar a desfiar o meu rosário pra todo mundo escutar? eu acho que a minha língua ia criar bolha porque eu ia falar sem parar da minha situação na vida que não tá fácil não mas AGORA CHEGA!’
Pensamento do Pedrinho: ‘Obrigado senhor!’

Minha nossa como eu ando nostálgico! A Janinha até ficou enciumada porque eu só falava de gente que já morreu e que ela não conheceu. Também pudera, ela tem só dezessete anos e eu já tinha vida útil quando ela foi parida, portanto, os meus amigos vão morrendo e ela nem tchum. Tadinha.
‘Janinha Janinha. No dia em que eu virar poeta eu vou fazer umas rimas pra você não se sentir assim tão burrinha minha querida’. Essa é outra que eu bem que gostaria que adotasse os hábitos sadios da mamãe.

A Janinha apareceu na minha vida assim: deprimido, eu via uns pontos pretos que me chamavam pro infinito. Esse infinito nada mais era do que a luz pros meus temores –que não eram poucos-, ou seja, significava a minha morte, meus queridos!
Céus, como eu amaldiçoava a morte –a minha, a dos outros, a de todo mundo. Não desejava a morte pra ninguém. Preferia a idéia de viver entrevado e vegetando numa cama do que apodrecer num caixão. E, numa dessas visões dos pontos pretos, eu vi a cara da Janinha –muito branquinha, muito graciosa.
A Janinha, explico, era uma velha fixação minha: a mulherzinha dos meus sonhos; a ninfetinha que eu queria pro resto da vida; a filhinha do papai que era euzinho. Putinha e santinha. Nem bonitinha nem feinha. Nem gordinha nem magrinha. A mulher ideal enfim.
E assim nos aconteceu como a Lilith e Adão: eu tanto pedi a deus que ele resolveu me atender e trouxe pra mim a Janinha direto dos pontos pretos dos meus olhos. Mas as semelhanças páram aí. Ela, a Janinha, sempre ficou junto comigo, nunca se rebelou por nada.

‘ Cadê o bidê desse banheiro Janinha?’
‘Nunca teve bidê esse banheiro meu amor’
‘Que besteira, Janinha! Como é que você se lavava então?’
‘Ué, como eu me lavava... no chuveirinho, oras!’
‘Mas Janinha, não é possível eu ter me enganado assim, eu moro aqui há mais de 20 anos!’
‘Pois é amorzinho, é por isso que eu digo: pára de sonhar acordado e olha ao redor. Bidê nunca teve mas uma mulherzinha louca por você, ah, isso sempre teve sim senhor!’

Eu tive dois irmãos na minha vida -digo tive porque hoje não tenho mais. O mais velho –o Jonas- sumiu na vida assim que o papai morreu e a mamãe foi internada porque resolveu que agora chegava mesmo. Nunca mais falou um ‘a’ na vida dela. Continua lá internada ainda, não a visito mais porque não adianta. Ela não interage, não se socializa. Parece um daqueles hamsters que as pessoas insistem em criar em casa e que só servem pra ficar na gaiola girando a roda. Mamãe tá bem assim.
Na juventude, ela era daquelas que faziam os homens chorar –sempre existiram essas mulheres que fazem os homens chorar por N razões: algumas de prazer, outras de raiva, outras de dor, outras de amor. Ela sentia um comichão nas pernas e nunca soube lidar com isso (também pudera, era involuntária essa coisa dos homens chorarem por ela). Papai, por exemplo, chorava sempre mas nunca pensou em largá-la. Eu e os meus irmãos, a gente vivia falando pra ele:
‘Putz pai, assim não é possível, você vai ficar um figo de tão seco. Pra que chorar? Mamãe é ciclotímica, o médico falou. Não bate bem e nunca vai bater. Vai cuidar da vida meu pai!’

Mas nada.

‘Filhotinho de onça, meu filhinho cuti cuti!
Mamãe é onça, grrrrrrhhhh’

‘Xá pra lá mamãe!’ - Eu morria de medo da mamãe!

Voltando ao Jonas. Ele sumiu. Ninguém mais soube dele e eu acho até bom pra falar a verdade. Sujeito esquisito aquele. Decidiu que ia ser engenheiro civil (dá pra confiar num sujeito que diz que quer porque quer ser engenheiro civil? Entrou na faculdade e tudo). Acho que ele sumiu porque tinha vergonha da gente. Nunca vi um engenheiro civil com a mãe louca internada no hospício.
De vez em quando alguém liga pra avisar que viu o Jonas em alguma cidade dessas dormitório. Eu não acredito porque ele podia ser esquisito e tacanha como todo irmão mais velho (quase todos), mas tonto ele não era e a gente podia ser louco (tudo louco na família) mas a gente era rico. Gente de posses entende? Então por que raios ele, um engenheiro civil, ia trocar o conforto de um lar pela paisagem caceta de uma cidade-dormitório? Nem uma mãe louca vale esse sacrifício.
‘Ai, vê lá o que cê fala, amorzinho!’
‘Xi, fica tranquila Janinha, não é por maldade não , mas ele bem que merece uns comentários assim pelas costas’
‘Amor no coração nem pensar né?’
‘Pra quê?’
‘Ué, pra distribuir palavras gentis pros queridos, amor!’
‘Ah, vai te fuder Janinha’.

O outro irmão ainda tá por aí, o Silvio. O Silvio também é mais velho que eu mas isso não quer dizer muita coisa no caso dele. Parece uma criança gigantesca. É até meio chato de ver porque a gente fica com pena. Acho que puxou todos os genes da mamãe e nenhum do papai. Pobre diabo inofensivo.
Um dia, quando todo mundo ainda vivia, o Silvio disse uma coisa que fez a gente ficar de queixo caído. Ele disse assim:
‘Eu sonhei que você ia morrer (apontando pro papai); que você não vai morrer mas vai ser como se fosse (apontando pro Jonas); que você vai ficar amarrada que nem mortadela na padaria pro resto da vida (apontando pra mamãe) e que você vai ser um idiota pra sempre (obviamente apontando pra mim)’.
Fiquei besta!
‘Ai mas que falta de educação benzinho!’ protestou a Janinha nessa hora.
‘É Janinha, você ainda tem muita coisa pra ver nessa vida, minha flor, não se preocupa não. Falta de educação é uma dádiva quando sai da boca de algumas pessoas. Não se esqueça disso’.

Se o papai que era sempre tão sábio não sabia o que responder na hora que o Silvio fez aquela profecia do cão, imagina a gente que era bem chucro feito um bode do sertão. A mamãe, num bravo ato de sanidade, soltou um ‘agora chega!’ mesmo sem ter falado nadinha antes e o Jonas olhou pra cima e bocejou como era de se esperar de alguém que vai ser engenheiro civil. Já o papai, no alto da sua sapiência e desenvoltura falou assim:
‘E você vai ficar dois meses comendo alho cru pra acordar com o teu arroto fedido toda vez que tiver um sonho estúpido desses!’ Estúpido mas profético. Deu dois anos e tudo aconteceu: papai durinho e branco feito gesso; a mamãe doidinha na camisa de força tentando escrever algum bilhete pro meu irmão Jonas que a essa hora já tava em outro país negando qualquer coisa que dissesse respeito a nós; e eu tava exatamente como sempre. Benditas palavras desse gigantesco do meu irmão!
Já o Silvio, quando viu o papai no caixão e a mamãe muda e amarrada, comeu todos os dentes de alho que tinha em casa. Acho que era pra se penitenciar por aqueles delírios todos que acabaram de vez com a nossa família.

Nos últimos tempos tava bem mais calmo. Só eu e a Janinha e de vez em quando o Silvio -que se casou com uma dona bem semelhante a ele, a Neusa, que -pelo menos à primeira vista- também parece uma criança gigantesca que dá dó só de olhar. Mas com o tempo eu aprendi que era só a primeira impressão. De tonta ela não tem é nada -forçou o Silvio a tomar jeito na vida e hoje ele não faz mais nada sem o consentimento dela (o que é bem bom também porque do jeito que ia ele não chegaria nem no ano que vem).
Inclusive foi do casal o curió que a gente tinha lá em casa. Toda vez que alguém ia pra lá sempre perguntava por que que o curió não cantava. Alguém por acaso pergunta por que que o índio tá sempre pelado? Por que que a Rosinha não depila a xotinha? Não pergunta né? mas sempre perguntavam por que que o pobre do curió não cantava. Segundo a Neusa -que comprou o bichinho de um velho que tem um viveiro cheio de espécies de avezinhas sem asas que ele mesmo corta-, o problema do curió é que ele é mudo. Simples assim.
Mas eu tô falando do caso do curió porque foi ele que trouxe pra nossa vida a Rosinha – aquela que não depila a xotinha. A Rosinha uma vez tocou a campanhia daqui de casa e quis saber se a gente não precisava de empregada. Era bem jeitosinha a Rosinha naquela época - impressionante como tem gente que fica acabadinha tão cedo né? A Rosinha é dessas - Mas então, a gente não precisava de empregada a não ser pra limpar a sujeira do curió. (e como aquele curió fazia sujeira minha nossa!)
Eu já sabia que a Janinha não queria mais saber do bichinho:
‘Ou você arruma um jeito de fazer essa ave estúpida parar de cagar no meu quintal ou eu dou um fora nesse curió que você vai ver só’.
Então resolvi não arriscar. Falei pra Rosinha:
‘Olha minha querida, o trabalho aqui é bem sossegado, você só tem que limpar a bosta do curió’
‘Só isso?’
‘Só minha querida, moleza’.
E desde então a Rosinha vive dentro de casa.

Quando a Rosinha chegou eu acho que nem pêlo ela tinha ainda. Era uma menininha muita da fornida, só que uma menininha de qualquer forma. Mas em dois meses, acho, tudo nela cresceu! Era uma beleza ver aquilo tudo tomando forma que nem bolo no forno! Daí a gente ia percebendo que de dentro da calcinha que, é claro, ficava embaixo da sainha florida, a Rosinha ia cultivando uma verdadeira relvinha que brotava a olhos vistos.
‘Ah mas precisa avisar essa menina que tem que aparar aquilo lá!’ dizia a amarga da Janinha –acho que com ciúmes do sucesso que a relvinha da criadinha fazia entre a gente (entre a gente, quero dizer entre eu e o Silvio):
‘Ah deixa disso vai Janinha, deixa a menina ser feliz lá com a relvinha dela! Que fertilidade! Que força!’
‘Ah, mas cê tá pedindo né seu paspalhão! Já vi tudo: que curió que nada, cê quer é podar aquela samambaia de pêlo com o teu próprio curió, safado! Ah, mas deixa eu saber que isso aconteceu que eu arranco a cabeça dos dois curiós com palha de aço que eu vou fazer com a buceta medonha daquela sonsa da Rosinha!’ ‘Puxa Janinha, isso são modos de uma moça fina que nem você?’ ‘Ah vai se foder brucutu!’

Outra do meu pai quando a gente ainda era criança. Ele tinha mania de correr atrás dos velhos na redondeza só com uma capa nas costas gritando ‘Tá vendo o que dá não morrer cedo!’ E caía na risada. Os velhinhos tadinhos, ficavam com o coração na boca. Não falavam nada de medo mas a gente tinha certeza que eles desejavam coisas bem ruins pra gente que era filho do papai. Ai que saudade daquela vida animada de antes!

‘Quem não tem medo de morrer que morra no meu lugar!’ Eu tinha certeza que a morte não era nem um pouco agradável (tem muita coisa que eu tinha certeza que não era nada agradável mas nada que se comparasse à morte. Quando alguém morre é que eu sinto que a vida é tão estúpida que não vale a pena ter filhos nem se apegar demais às pessoas que podem morrer antes da gente). ‘A morte é a liberdade da alma! Mas quem quer a alma vadiando por aí sem eira nem beira, né mesmo gente boa!’ , já dizia o papai.
Minha mãe naquela loucura que ela mergulhou também sabe que no fundo vale mais a pena ficar lá quieta no sanatório do que partir dessa pra outra ‘Vai saber aonde a gente vai parar?’ Não gostava nem de pensar nisso. Sou muito do medroso é verdade.
E foi pensando assim com essa certeza de que tudo vai ser muito pior do outro lado que eu morri. Acreditem! Eu morri não querendo morrer. Mas a realidade é essa mesmo. Sou um morto fudido que não tem idéia do que é descanso eterno. A Janinha é que não se conforma com a minha perda. Vive pra me acusar de abandono e outras coisas estúpidas que eu não tenho a menor culpa. Ai essas mulheres são tão burras meu deus do céu!

A Janinha -
‘ó meu senhor, por que levaste o amorzinho de mim? e eu meu deus do céu? e eu?’
‘ó seu puto desgraçado, por que você foi embora de mim? e eu seu puto? e eu? agora eu vou ter que te lavar, te vestir, te enterrar e depois chorar, chorar e arrumar coisas pra fazer até alguém se lembrar de mim porque eu não sei pra onde eu vou agora. Não tenho pai, não tenho mãe, não tenho ninguém. Minha alma eram os pontos pretos que você via e agora como morto não vai mais ver porque ou você se arranja no céu e vê tudo colorido ou vai pro inferno naquele escuro todo. Puto puto puto!’

‘não minha querida, enterrado não. Quero ser cremado sim?’

‘é pensando bem vou te cremar. Vou ter o prazer de ver você ardendo no fogo, puto puto puto!’

Custei a me acostumar com a minha nova condição de morto. ‘Isso não é nada, isso não é nada’ eu fico repetindo em pensamento desde o meu falecimento. Como se alguém acreditasse mesmo nisso. ‘Papai, a tua vida foi tão curta e a minha então nem se fala’
‘Meu filho, gente da nossa laia quando é vivo não tem serventia; quando é morto a gente vira herói’
‘Mas eu não quero ser herói, eu sou tão covarde que me dá raiva até’
‘Ah mas isso não interessa, aqui todo mundo é herói: herói covarde, herói valente, herói corno...todo corno é herói!’.
Fiquei a pensar nisso.

O Silvio confessou à Janinha que ele quer que a Neusa se exploda com aquelas regras todas que ela caga sem parar ‘Ela que morra, aquela bandida maluca’. Como são as pessoas né? A mulher tirou ele da lama, fez a vida dele parar de feder e agora ele vai e fala uma barbaridade dessas! Pilantra.
‘De onde, meu deus, eu vou tirar forças pra viver assim pra sempre?’
E deus tinha a língua presa: ‘E the onthe fozê thirou a ithéia the que fozê thá fifo? Botha na cabeza meu filho the que fozê thá mortho. Morthinho tha zilva e vai vicar azim athé o vim thos themphoz, ou zeza, phra zemphre, chriathurinha inzignifiganthe!’Entendeu?
Eu entendi. Tava amarrado a essa rotina de vivo-morto sem a piedade nem do thodo-phoderozo! Ai que situação.
Fui levando minha existência até onde eu pude mas isso não durou mais do que uns dias.
Numa manhã eis que surge o curió pra morar comigo. A Janinha deve ter cumprido a promessa de dar fim na ave estúpida porque é óbvio que o bicho não parou de cagar.
‘Ô curió da cabeça amarela, seja bem-vindo ao mundo dos mortos-vivos. Eu sei que você também morreu sem querer ter morrido, então a gente vai fazer companhia um pro outro até que o zenhor thodo-phoderozo fique com dó da gente e resolva que a gente saia daqui e renasça em flor. Eu não vejo a hora, ó curió amigo meu. Vem cá, ainda não cantas?’ ‘Canto sim meu caro. Sempre cantei, mas aquela molóide da sua viúva podava minhas aspirações’
E o bicho desandou a cantar até o anoitecer. Pássaro precioso esse!

No que a Neusa soube que o Silvio tava armando pra infelicidade dela, ela foi até a polícia e disse que tinha um estranho na casa dela, que ele era esquizofrônico e queria a todo custo se passar por seu marido. O delegado socou tanto o Silvio coitado que eu senti o cheiro de sangue daqui do limbo. Que tristeza isso de casal que vive junto e começa a se odiar e acaba tudo em pancadaria né? Tô falando que o ser humano é mais desumano que muito bicho louco por aí! Vide o curió amigo que não bate nem as asas, muito menos no semelhante.
‘Curió, se asas você tivesse, levaria-me em seu lombo para conhecermos o mundo?’
‘Claro que não,tu és muito maior do que eu e o mundo eu já conheço e posso lhe dizer que não é grande coisa em nenhuma parte’.

Hoje o mar amanheceu nervoso e a Janinha foi até lá no meio das águas movimentadas jogar minhas cinzas. Puxa vida, nem se eu quisesse voltar à minha vida antiga agora não poderia mais. Sem corpo, continuo sendo uma alma sem eira nem beira como o meu pai temia. Quanto sofrimento minha nossa! Não sei se a Janinha sofre tanto assim ou se sou eu que sofro demais da conta. Não deveria mais sofrer desse jeito, tô morto mesmo, afinal. Mas a Janinha chorava que dava pena em cima do bauzinho que carregava as minhas cinzas. E eu que tinha medo de ser cremado antes de morrer porque achava que a alma sentia a dor do corpo que nem aquelas lagartixas que perdem o rabo e o rabo não pára de mexer de jeito nenhum. Mas eu não senti nada. Pra falar a verdade, eu nem sabia que já tinha sido cremado até ver a Janinha indo pro mar com as minhas cinzas na mão. Fiquei meio chocado, vou confessar, mas agora eu tô com tanta pena da Janinha que eu dava tudo pra trocar de lugar com ela. Ela no bauzinho e eu entrando no meio do mar chorando feito bezerro desmamado perguntando pros céus ‘por quê? por quê?’.

Ninguém sabe o quanto eu amei a Janinha na minha vida. A minha mãe antes de ficar louca de vez falava que tanto amor não ia acabar bem. Que pena que a mamãe não fala mais. Eu queria tanto saber a quantas andam as impressões dela do mundo, de mim, da minha morte. Acho que ela nem sabe de nada, que eu morri, que eu fui cremado, que eu tô infeliz irreversivelmente.

‘Mamãe, você não fala mais, eu sei, mas eu queria tanto te contar as últimas da minha vida...’
‘Meu filhotinho amoroso, falar eu não falo, mas agora você também não fala tampouco...até onde eu sei os mortos não falam, confere?’
‘Mas então você sabe que eu morri?’
‘Claro filhotinho, eu te matei!’
‘Como assim mamãe, tá louca?’
‘Controla essa tua mente filhotinho! Não se esqueça que eu leio pensamento, hã!’
‘Vai me explicar ou não?’
‘Explicar o quê? Não tem nada pra explicar, eu vi que aquelas companhias que você tava metido não te faziam bem de jeito maneira. O único elemento saudável daquela corja era o curió! Daí que eu tive uma conversinha franca com o teu pai e ele me prometeu ajudar em nome dos velhos tempos’
‘Vocês me mataram? Meu próprio pai e a minha própria mãe se juntaram pra me matar? Ai que desgraça que caiu na minha vida!’ ‘Pára de resmungar filhotinho, a gente sabe o que é melhor pra você. Agora chega!’
‘Assassina!’
‘Opa-la-la’.

Essa foi a última vez que eu vi a minha mãe. O papai foge de mim desde que soube dessa conversa –justo ele que era o meu grande herói que não deixava pedra sobre pedra e depois caia na gargalhada! Grandes exemplos eu tive em casa! Mas deixa estar. Roguei uma praga pra minha mãe que se ódio de filho pegar, ela vai padecer na terra até os 108. Amarrada na camisa de força e muda. Mudinha a filha da mãe.
Do papai eu não tenho raiva. Só despeito. Eu também queria ter aprontado todas na vida e virar um rato nojento em morte. Mas não. Eu tô morto e a mesma lombriga chorona que eu era em vida. Tanto que ninguém foi jogar as minhas cinzas no mar junto com a Janinha. Nem mandaram rezar uma missa nem nada. E a Janinha também já deve ter esquecido de mim à essa altura dos acontecimentos. Pobre de mim.

Meus irmãos eu não tenho mais por perto. Que inveja deles. Estão livres de mim, sãos e continuam vivos. Do Jonas não tenho notícias, mas se ele não tá mais na terra, com certeza tá melhor do que eu que fico aqui entre os vivos-mortos. Ou foi pro paraíso ou foi pro inferno. Que feliz que ele deve ser agora, o engenheiro cretino. Só sinto pelo Silvio que vai morrer –óbvio- e que vai se instalar bem aqui do meu lado porque não se conteve na condição de retardado e se envolveu com aquela coitada da Neusa e ainda por cima não aguentou o tranco e passou a odiar a dona e planejar mil e uma formas de matá-la. Sujeitinho asqueroso, pensando bem daqui.
Das lembranças de infância a única que eu considero é aquela em que nós três estávamos a matraquear coisas bem horrorosas dos mais infelizes e desafortunados até que um raio caiu no quintal da nossa casa e uma voz anunciou ‘Calem a boca zeuz fethelhos abuzathos!’ O Sílvio saiu gritando ‘Eu não quero morrer, eu não quero morrer’ e então eu vi o rosto do Jonas e ele tava sorrindo –um sorriso meio perverso- que desapareceu quando ele me viu flagrando essa faceta dele que ninguém conhecia. Acho que ele era mau mesmo. Psicótico que queria ser engenheiro civil. Gozado, nem a mamãe nem o papai falavam muito do Jonas, tanto que eu ficava enchendo a cabeça fraca do Silvio dizendo que o irmão Jonas era adotado e que por isso ele queria ser engenheiro civil. Perda de tempo: o Silvio não sabe o que é engenheiro civil. Pra ele é a mesma coisa que dizer que alguém tem micose. É tudo pejorativo. Mas a verdade é que ninguém lá em casa ligava muito pro Jonas. Até que ele sumiu. E ninguém manifestou interesse em buscá-lo de volta. Tá certo que essa decisão deveria partir de mim –com um pai morto e uma mãe louca e sedada. Mas pra todos os efeitos ninguém foi atrás dele. E ele se foi.

Silvinho sempre foi daquele jeito. Nunca fez nada de efetivamente errado, o que denota uma certa instabilidade em seu caráter, que não era mal de fato, mas que também não deixava muitas brechas pra pensarmos que ele fosse um ser normal. Mas isso também era de menos. Meus pais nunca se prenderam a esse tipo de normalidade. O importante era que fôssemos alfabetizados e educados com as visitas –talvez pra contrabalancear as atitudes esquisitas do papai durante o jantar, por exemplo.
Minha família ficou todinha quebrada. Ninguém sabe de ninguém e o papai –que é o único que poderia dividir experiências comigo foge de mim porque se sente culpado pela minha morte, o rato escroto. O terrível é constatar que mesmo após a morte e a inevitável liberdade da alma, a gente não perde esse hábito de sentir culpa por tudo e todos a quem fizemos mal em alguma via. Terrível constatação. O curió que o diga -meu amigo curió, única companhia que me restou no mundo.

Quem veio me visitar dias desses foi a Rosinha: ‘Fiquei com saudades do curió’ .
Desde que eu parti daquele mundo, o curió foi ficando cada vez mais tristonho até que a Janinha resolveu acelerar o processo e deu na cabeça do bichinho. Eu já imaginava alguma coisa parecida com isso. O problema é que a Rosinha ficou sem função na vida, entrou em depressão e resolveu me visitar ‘Estou de passagem’ disse ela toda cerimoniosa.
‘Deixa disso, fica aí vai Rosinha’
‘Não posso não, tenho que cuidar da minha vida, isso aqui pra mim é férias. Toda vez que eu me canso eu tento me matar, me relaxa sabe?’
‘Puxa Rosinha!’.
A Rosinha sempre foi bem expansiva, apesar da vergonha de ser só uma limpadora de bosta de curió, mas ela pegou tanto amor no bichinho que a vergonha foi ficando pra lá. Até sentar na mesa pra tomar café e contar umas piadas ela fazia de quando em quando. ‘Que orgulho Rosinha, fico feliz pela tua visita’.

‘Ô curió, meu curió, cê tá bom?Lembra de mim? A Rosinha que limpava a tua bosta’
‘Tô bonzinho sim graças a deus obrigado’
‘Curió, lembra quando perguntavam por que ocê num cantava?’ ‘Lembro, ô se lembro’
‘Então, agora que ocê morreu, as visita da Dona Janinha fica perguntando pra mim por que eu tenho a xota tão altona e eu fico sem sabê o que dizer curió’
‘Ah mas cê é tonta mesmo né Rosinha! Diz pra eles que é porque não é xota coisa nenhuma, que é um três oitão engatilhado que cê tem no meio das pernas sô’
‘Ô curió, num se esquece que eu sou só uma criada’
‘Pois é, cê é que tem que lembrar que cê é uma empregada humana e não bicho de estimação como a Janinha tá pensando que cê é. Agora se ela insistir com essa putaria, diz pra ela contratar alguém pra limpar a tua bosta todo dia’
‘Credo curió, eu sei me limpá sozinha!’
‘Mulé, faz o que eu tô dizendo!’

‘Ó curió meu amigo sábio, eu tô achando que esse negócio de limbo tá me tirando dos eixos’.
Eu que vivia tão bem, falastrão como eu só, conformado com os defeitos dos meus queridos e nem praguejar eu praguejava quando eu podia porque era um mortal pagador de impostos. Agora eu sou um herói segundo o meu pai e um santo segundo a minha mãe. O que é que é isso que me deu?
Será que é só isso, minha gente?
‘E você curió amigo meu: por que você fica aqui comigo se agora você é uma alma livre e não precisa mais de asas pra voar? Vai voar amigo curió’
‘Ora cala a boca sim? Eu fico aqui porque a gente é igual, não percebe?Eu tinha asas e algum desgraçado cortou fora, tudo bem, viver na gaiola era melhor do que morrer de fome ou virar comida de cascavel. Daí veio uma dona que não aguentava a quantidade de bosta no quintal dela e deu uma martelada na minha cabeça, eu morri e agora tô aqui. Já você era feliz quando não tinha nada pra ser, daí cresceu, ficou deprimido e só pensava em não morrer, mas morreu mesmo assim porque a sua mãe achou que era melhor pra você, fazer o que né? E agora tá aqui junto comigo. A gente é idiota meu caro, i-di-o-ta! A gente não tem o menor controle pra onde vai a nossa vida, então que tal ficar calado por favor?’

Não posso ficar quieto!
Deus me torturou na vida, deus me tortura na morte e eu continuo crente; meus irmãos me largaram no mundo, meus amigos me esqueceram no limbo e os meus pais só me dão desgosto; não posso me matar porque eu já morri, não posso reencarnar porque a minha alma anda perdida; meu amigo do peito é uma ave sem asas e minha experiências não contam porque eu não existo mais.
O que foi foi feito de mim cristo-rei? Será que eu ainda chego a algum lugar? Quem teria a gentileza de me responder?
‘Me responda amigo curió’
‘Ara!’

Um comentário:

Ingrid disse...

Até tem alguma graça ser bipolar.

; )