segunda-feira, agosto 06, 2007

geleira cucaracha _ cap. 6

Muitos quilometros acima de Cataguazes mora um senhor de hábitos estranhos e feições de diabo.
Seu nome, Armando Velasquez.

“Mas ele é muito feio!” exclamaram todas as mulheres que já cogitaram manter uma união estável com o distintíssimo, de olho na fortuna avaliada em milhões de dólares.

Assim, o tempo passou e ele permaneceu solteiro. E virgem.
Conta a lenda que nem as meretrizes queriam o que ele tinha no meio das pernas porque achavam que poderiam estar de nheco-nheco com o demo.

Mexicano até à alma, problemático até o rim que não filtra direito os litros de tequila que bebe para esquecer. Ou melhor, bebia.
Agora está muito bem casado com uma forasteira misteriosa do sul do continente que apareceu em sua vida como quem vem do paraíso: não quis saber da feiúra, da semelhança com o demo e sequer da pouca experiência nas artes do amor carnal. Deitou-se com ele na cama virgem de viúva e de lá nunca mais saiu.

Com o tempo, Armandito percebeu que o estômago forte da esposa não se tratava de amor ou coisa parecida. A questão é que para ela tanto fazia se o marido era bonito ou não. O pior já havia sido feito: ela deitara-se com um homem.

Mas isso é irrelevante. O que conta é que ele está casado e que a lésbica em questão é Zuleica Mendonça, vulgo Zuzu, agora com a faca e o queijo na mão para pôr em prática seu plano diabólico de recuperar o grande amor de sua vida, a menina mais linda do mundo: Olavinho Cerqueira.

sexta-feira, julho 13, 2007

geleira cucaracha _ cap. 5



Ainda envolto em sofreguidão, frei Olavo não percebe a aproximação da noite que, além da habitual melancolia, desta vez também traz um incômodo e azedo sabor de que lhe faltou macheza na hora em que mais deveria ser macho em toda sua vida. Fosse para encher o travecão de porrada; fosse para pegá-la forte nos braços e tascar-lhe um beijo que a faria, enfim, sentir-se mulher plena e realizada.

Do lado de fora dos muros da clausura, deitada sobre a bancada rota de seu camarim de estrela, Julli chora compulsivamente por ter deixado o homem de sua vida escapar-lhe das mãos sem, ao menos, tê-lo convidado para assisti-la naquela noite.
Justamente a noite em que o pinto não pulará à simples menção do nome “Genésio”.

“Ai minha santa Alcina, que faço eu? Era só o que me faltava, à essa altura do campeonato, perder meu sono por causa de um… padre!?!”

Felizmente, a elocubração é interrompida pelo assistente de palco que bate à porta e diz: “Julliard, minha star, faltam 5 minutos!”.

O show daquela noite foi totalmente dedicado ao padre sem nome, ao estranho de batina que arrebatou o coração da estrela que brilhava no palco, como sempre (só que desta vez, com o pinto no devido lugar durante os 60 minutos que duraram o espetáculo).

E, ainda nos jardins internos do Mosteiro São Patrício das Causas Ambíguas, frei Olavo também se dedica àquilo que mais sabe na vida: orar.
Orar muito, com afinco e sangue, novenas intermináveis, todas dedicadas à meretriz sem nome, à estranha putana com volume entre as pernas.

quinta-feira, julho 12, 2007

geleira cucaracha _ cap. 4



É uma manhã calorenta em Cataguazes e finalmente frei Olavo terá que sair da clausura.
Dom Perignon ordenou que manteiga fosse feita e o encarregado de comprar leite do vaqueiro seria impreterivelmente frei Olavo.

“Creemdeuspai! Essa criatura vai criar limo aqui nesse monastério. Oxalá o vaqueiro fosse vaqueira e levasse essa pobre alma pros caminhos tortuosos da carne! Hehehe”, desabafa o pontífice com seus botões de ouro. E dá-lhe sinal da cruz.

Bem a contragosto, frei Olavo sai à rua com suas vestes espartanas, sandalinha de capotão e o cabelinho tigelinha. Desaprendeu a andar sob o sol e não suporta a idéia de ver gente ordinária vestida com roupas ordinárias.
No fundo é um esnobe que teve a sorte de ser abusado em tenra idade e ter a vida toda para se eximir de seus pecados. Mas a mente continua pecaminosa e preconceituosa.

Ao passar em frente ao Bombshell, o famoso puteiro, revirou os olhos e acelerou o passo. Lembrou das histórias que tia Zuzu lhe contava ao pé do ouvido enquanto lhe conferia a fimose lá pelos idos de 1979.
Mas o destino prega peças até no mais cristão dos homens e, bem na hora em que suas sandalinhas de capotão chutavam um pedregulho em direção à placa de “aceitamos pré-datados”, eis que surge das profundezas do inferninho: ela… Julliard Bombshell!

Nota de rodapé: Não. Julliard Bombshell não é puta de jeito maneira. É fina e conceituada demais pra isso.
Coração bom que é, Julliard –aka Julli- veio trazer bombons à sua mestra e gurua espiritual Crystal Ametista que finalmente conseguiu financiar sua operação de mudança de sexo aos 66 anos, muito bem conservados. “Pelo menos não vou ter que dar satisfações aos bofes sobre o porquê eu nunca compro modess no supermercado: pra todos os efeitos, tô na menopausa. Hahaha”, brinca a nova dama do pedaço.

Olavo e Julliard.
As duas almas se chocam num encontrão digno de briga de galo. Não fosse frei, Olavo chamaria a bicha na chincha, mas Julliard não viu nenhum infortúnio no encontro casual.
“Perdão… não a vi saindo pela porta. Machucou?”
“Infelizmente não. Adoro religiosos fundamentalistas que vêm com tudo e nos derrubam e nos destroem e nos deixam em frangalhos!”
“Como é?”
“Brincadeira, fofura. E você, tá bem? A batina não subiu? Tá tudo nos conformes?”

Ao ouvir tais palavras picantes saídas de boquinha tão carnuda, frei Olavo, obviamente, sofre uma ereção.
E olha que, precavido que é, entregou-se ao exercício do onanismo duas vezes antes de sair às ruas já pressentindo as tentações que encontraria pelo caminho.
Isso que ainda nem chegou perto do vaqueiro ou vaqueira ou o que for que lhe dará o leitinho morno.

Fugindo mais rádipo do que freira em saldão de minissaia, frei Olavo retorna ao mosteiro e se tranca em território sagrado mandando às favas o leite, a manteiga e a vaqueira(o).
Ofegante, pega o terço e começa o rosário ali mesmo nos jardins internos da casa de Deus.

“Espere Dom Perignon saber disso!”, ecoa a consciência dentro de sua cabeça cheia de pensamentos pecaminosos.

sexta-feira, julho 06, 2007

geleira cucaracha _ cap. 3



Faz dez anos que Olavo Cerqueira não sai na rua.
Por opção própria, fez voto de pobreza, clausura e burrice.
Desde que entrou no Mosteiro São Patrício das Causas Ambíguas, fica a seguir seus superiores em busca de iluminação em maior ou menor grau. Isso irrita Dom Perignon num grau que, se Olavo soubesse, ficaria sentado em espiga de milho por sete dias.

Antes de se decidir pela vida abnegada dos franciscanos, Olavo era um garoto vivaz e com a sexualidade em dia. Já estava aprendendo a lidar com as ereções fora de hora e ao poucos ia se sentindo orgulhoso com o comprimento de sua genitália. Enfim, um garoto normal.
A problemática surgiu de fato quando a mãe, dona Crotilde Cerqueira, trouxe para dentro de casa Zuleica Mendonça, a criada-cozinheira-babá.
Zuleica se mostrou de uma eficiência ímpar, deixando a casa um brinco como jamais Crotilde fora capaz.
Com tudo reluzindo, os estômagos forrados com iguarias mineiras divinas e o pequeno Olavo tratado a pandeló, não demorou para Zuleica ser sumariamente integrada como um membro da família Cerqueira.
Assim, Zuleica, a criada-cozinheira-babá, virou tia Zuzu.

Olavo se lembra desses tempos dourados com um misto de medo e fascínio. Ele vivia o auge da testosterona que deixa meninos em tenra idade com vontade de escavar poços de petróleo no colchão; e o boom do crescimento econômico brasileiro deixava tudo muito mais tesudo, afinal de contas.
Mas daí pra frente, um black se instala em sua mente e Olavo se apressa em fazer o sinal da cruz.

Tia Zuzu gostou do rapazola desde a primeira vez que repousou os olhos em seu rostinho de fada e na bundinha arrebitada demais para um viril.
Tia Zuzu era lésbica e isso seria óbvio e ululante, caso os Cerqueira soubessem da existência de uma lésbica no mundo.
E, entre uma fornada de pão de queijo e uma tijelada de vaca atolada, Tia Zuzu foi transformando o pequeno Olavinho numa mini-princesinha Caroline de Mônaco: cabelinhos castanhos, olhinhos verdes, tiarinha de brilhantes, vestidinhos rodados e sapatilhas de strass. Isso, é claro, na ausência de Clotilde e Jayme Cerqueira.

Ao todo, foram sete anos de subserviência regada a incríveis doses de dor e prazer. Transformar aquela belíssima criança em escrava sexual fazia a desalmada da Tia Zuzu ter faniquitos internos de êxtase. Dava pra ver na sua cara o orgasmo chegando e culminando no derradeiro babyliz em cima do cocoruco do Olavinho.

Mas num belo dia, Olavinho não aguentou a humilhação e tentou o suicídio da maneira mais estapafúrdia a que se tem notícia.
Depois, especialistas se puseram a justificar tamanho desatino como uma tentativa desesperada de chamar a atenção dos pais ausentes e se aproximar de Deus que, até então, via a tudo de cima e de longe.
Neste belo dia, Olavinho acordou como de costume, foi à cozinha e praticou o auto-empalamento com o mixer de fazer vitamina.
Detalhe: esqueceu de ligar na tomada, ou seja, o que deveria ter se tornado uma auto-chacina interna, se transformou numa patética ação sodomita daquelas que residentes em plantão morrem de dar risada ao contar para todos os conhecidos o que eles são obrigados a tirar da bunda de terceiros.

Mas pelo menos, pra uma coisa serviu esse episódio horrendo: Tia Zuzu foi mandada às favas (devidamente algemada) e Olavinho mandado para o Mosteiro São Patrício das Causas Ambíguas com sua almofada de espuma, que acabou nem usando, já que lá, as pessoas não sentam, ajoelham.

geleira cucaracha _ cap. 2



O nome Julliard, Jerônimo tirou da conceituada escola de dança e artes de NYC onde, obviamente, ele nunca colocou os pezinhos.
Jerônimo, a bem da verdade, nem sabia ao certo o que isso significava . Só sabia que a Claudia Raia citou este nome numa entrevista à Marie Claire e ele nunca mais esqueceu.

Já Bombshell era o puteiro de onde saiu Crystal Ametista, a boneca que introduziu Jerônimo no mundo das “artes e espetáculos”.

Depois de ensaiar todo o repertório rico de Maria Alcina, Julliard finalmente tomou coragem e fez seu debut ao grande público no Clube Atlético Cataguazes sob fortes palmas e assobios da ala masculina da cidade carente desse tipo de diversão.
As mulheres, claro, torceram o nariz a princípio, mas depois do bis de Kid Cavaquinho, a famigerada canção, não havia mais uma bacurinha sossegada no salão.

Ali nascia a estrela: Julliard Bombshell.

Pronto! Estava feito o mito!

“Ela tem pinto!”, ouvia-se daqui.
“E que pinto!”, dizia-se d’acolá.

geleira cucaracha _ cap. 1



Toda vez, bem na hora do pulo do “Genésio... a mulher do vizinho sustenta... aquele vagabundo”, o pau sai do lugar e quase põe tudo a perder.

“Puta que pariu! Tenho que resolver isso hoje de uma vez por todas”.

Essa é a prioridade atual nos assuntos cotidianos de Julliard Bombshell.

Julliard Bombshell vem a ser a grande estrela de Cataguazes, cafundó de Minas, e é famosíssima nas redondezas por imitar Maria Alcina como ninguém.
Maria Alcina, como sabemos, é a segunda estrela de Cataguazes e, por infelicidade de Julliard, Kid Cavaquinho é o maior hit da carreira da moça e não tem condição de algum show da original ou da cópia mais famosa que a original acontecer sem esse maldito número.
De modo que ontem foi a gota d’água e, sem uma solução pro pau que pula na hora do “Genésio”, não tem show hoje. E ponto final.

Julliard não nasceu Julliard, obviamente.
Jerônimo Rosa sabia desde pequeno que era diferente. Diferente de tudo: meninos, meninas, homens, mulheres.
Assim sendo, resolveu desde cedo explicitar essa ambiguidade pra quem quisesse ver e andava pelas ruelas da cidadezinha em plumas, paetês e penachos encaixados por todos orifícios do corpinho mignon.
Num belo dia, o click definitivo sobre o futuro veio quando a Maria Alcina, em carne e osso, veio por trás e disse com aquela voz de furacão: “Mas que criatura! Quando crescer você vai me engolir de plataforma e tudo! Hahaha”.
E assim foi feito.

quarta-feira, março 28, 2007

o meu ódio e a piscina da juliana abreu (lição de moral infanto juvenil)



Só um dia depois da mamãe explicar que sentir ódio não era uma coisa boa, eu estava explodindo de ódio da Juliana Abreu.
Eu achava a Juliana Abreu a criatura mais horrorosa que já pisou na minha escola desde que eu estudo lá, e olha que isso já faz um século!
Quando ela entrou há uns dois anos, eu bati o olho e disse pra Mari Cabrera, que era a minha melhor amiga nessa época: “Essa aí não é flor que se cheire!”
Batata! Não deu dois dias e a fulaninha já começou a botas as manguinhas de fora.

Então, eu vou explicar tim-tim por tim-tim tudo o que a Juliana Abreu aprontou com a minha pessoa nesse tempo todo.

Primeiro, é bom contar pra vocês como é a Juliana Abreu: ela é muuuito alta, muuuito loira, muuuuito meiga, muuuuito lindinha e muuuuuito metida. Apesar da gente ser obrigado a ir à escola de uniforme, ela sempre dava um jeito de colocar algum casaco, ou tiara, ou meia, ou qualquer coisa muuuuito linda, importada e cara. Daí as garotas mais fracas das idéias ficavam hipnotizadas com tudo isso e babavam um ovo tremendo dizendo que ela é super-legal, super-descolada, super-blablabla.
Como eu era mais esclarecida, conseguia enxergar direitinho o que a Juliana Abreu era na verdade: uma fútil filhinha de papai que não tinha nada na cabeça.
Até um tempo atrás, eu compartilhava a mesma idéia com a minha ex-amiga Mari Cabrera, mas essa um dia me fez o favor de passar pro lado de lá, engrossando o côro das puxa-saco tietes da Juliana Abreu. E o pior é que ela fez isso dizendo na minha cara que o que eu sinto por ela não passa de inveja, dor de cotovelo, despeito. Audácia da pilombeta!

Depois que eu me vi sozinha na cruzada anti-Juliana Abreu, resolvi que tinha que mudar a estratégia. Chega de espernear e falar pra quem quisesse ouvir que eu não concordava com o resto do mundo e que eu achava a Juliana Abreu o fim da picada. A partir de então, eu iria ser bem mais sutil e, em alguns momentos, poderia até parecer uma fã do “entojinho”.
Minha primeira medida foi me aproximar da fofa. Fisicamente. Assim, fiz que fiz até que consegui me sentar na cadeira ao lado esquerdo da Juliana Abreu. Ela achou esquisito mas não falou nada. Até deu um sorrisinho que, na minha opinião, deveria significar “bom dia”. Eu retribuí o sorrisinho e até falei: “Bom dia, Ju”.
É claro que ela sabia que eu nunca fui com a cara dela, mesmo porque nunca me preocupei em esconder. Se eu fosse ela, sentiria uma pontadinha de medo... eu tenho uma fama bem engraçada na escola. Eles acham que eu bato nos meus irmãos menores e que eu como carne crua. Essa parte é verdade. Será que eles nunca ouviram falar em kibe cru?

Quando a professora de história entrou, também estranhou a minha nova posição na sala. Eu sempre sentei no fundão e não fazia muita questão em prestar atenção na aula. Bem diferente da Juliana Abreu que além de tudo era a mais inteligente e aplicada da turma. Urghhhh!!!!!
A aula começou e o tema era a Inglaterra. E qual não foi a minha surpresa quando a “coisinha” disse toda orgulhosa que já conhecia a Inglaterra, inclusive aqueles lugares todos que a professora citava: Buckinham, Westminster, Yorkshire... e a Juliana Abreu do meu lado dizendo “ah... esse lugar é realmente incrível!” O que foi que eu fiz pra merecer isso?
No final da aula, eu respirei fundo, olhei pra ela e disse assim: “Nossa Ju, você é tão viajada... Deve ser legal ter pais como os teus que te levam pra conhecer o mundo inteiro, né?”.
Ela ficou meio sem graça como comentário e fez uma cara meio triste. Daí ela deu tchau e foi embora. Achei aquilo tudo muuuito esquisito, mas tudo bem.

No outro dia, ela já estava mais acostumada com “a nova amiga”. Me deu dois beijinhos e tudo! Engraçado é que de perto ela nem era assim tão absurda. Mas deixa isso pra lá.
No recreio eu fui apresentada às suas baba-ovos, digo, amigas, inclusive a Mari Cabrera que ficou com os olhos maiores do que duas laranjas-pêra quando me viu de braços dados com a Ju. Eu fiz que não vi, mas eu achei muita graça da cara dela.
Tomamos suco de laranja e comemos sanduíche natural de beringela porque eu descobri que a Ju era vegetariana! Olha só que coisa: eu a-do-ro carne vermelha, branca, suína, bovina, de frango, peixe, avestruz... e ela não colocava um grama de carne na boca.
Fui anotando tudo mentalmente pra um dia poder fazer um dossiê sobre o porquê que a Juliana Abreu era tão insuportável.

Quando eu voltei pra casa, perguntei pra mamãe como é que alguém pode não comer carne na vida. Então ela me explicou que essa é um filosofia de vida, não comer outro animal, porque essas pessoas acham que é muito cruel comer algo do mesmo reino que os dela, mas que isso deveria ser uma opção pros adultos porque criança precisa comer de tudo pra poder crescer saudável e inteligente. Daí eu, que como muita carne, juntei A + B e concluí que a Juliana Abreu só pode ser burra. Mas então por que ela sabia de tudo e ia bem em todas as provas? “Ah, se eu também conhecesse a Inglaterra também saberia de tudo e iria bem nas provas, óbvio!”.

Um dia o nosso grupo teve que fazer um trabalho de escola na casa de alguém. Eu fiz que fiz até conseguir convencer todo mundo que o melhor seria se reunir na casa da Juliana Abreu. Falei que era mais perto de todo mundo, que era mais perto e que a Juliana era tão legal que não iria se incomodar se a gente fosse estudar na casa dela. No começo ela fez uma cara meio contrariada, mas no fim acabou topando e dizendo que ia ser legal porque os pais dela não estariam por lá e que a gente ia se sentir à vontade. Bingo! Mais uma parte do plano dando certo! Finalmente eu iria conhecer o esconderijo do inimigo.
Quando a gente chegou na casa da Juliana, eu quase caí pra trás. Era uma mansão incrível com várias salas enormes e um teto muuuito alto. Isso sem contar nos jardins super-floridos e do monte de pessoas que trabalhavam por lá. Achei engraçado que eles chamavam a Juliana de senhorita Juliana e isso, convenhamos, é muito surreal.
A sala se abria pra uma parede de vidro que, por sua vez, dava pra uma baita piscina linda. Só que ninguém usava a piscina e nem nenhuma outra parte da casa. Isso era um desperdício imperdoável na minha cabeça.
A Juliana parecia bem feliz com a presença de todo mundo e ficava perguntando a toda hora se a gente estava com sede ou com fome. E é lógico que a gente estava sempre com sede e com fome. Daí aparecia uma das muitas pessoas que trabalhavam na casa e trazia muitos sucos e bolos e sanduíches pra gente comer. Foi bem bom!

Quando começou a anoitecer liguei pra minha mãe vir me pegar e então a Juliana Abreu perguntou se toda vez que eu ligava, a minha mãe vinha me pegar? Eu falei que sim e ela me disse que isso devia ser uma coisa bem legal. Eu perguntei, então, o que devia ser tão legal? “A mãe vir buscar a gente toda vez que a gente liga”. E eu respondi: “Ué? A sua mãe não vai te buscar quando você liga?” E ela respondeu: “Não... ela deixa um motorista na minha cola o dia inteiro”. Aiiii.... achei aquilo tãooooo chique: um motorista pra me levar pra cima e pra baixo. O que é ter uma mãe que te leva e busca se você pode ter um motorista só pra você? Mas a Juliana Abreu não parecia muito feliz com o motorista. Estranha, essa garota...
Na volta pra casa, eu contei tudo o que tinha de incrível e maravilhoso na casa da Juliana Abreu pra minha mãe. Eu estava tão animada com tanta mordomia que não parava de falar até que a minha mãe disse: “Nossa... mas a Juliana me parece tão tristonha.” Isso ficou martelando na minha cabeça.

No dia seguinte, como todo bom convidado, fui agradecer à Juliana Abreu por ter nos recebido na sua casa e que eu havia gostado muito de tudo. Ela disse que também havia gostado e que, por ela, a gente iria estudar lá todos os dias porque ela se sente muito sozinha todas as tardes. Confesso que fiquei com uma pontinha de pena dela, tadinha.
No final da aula, a Juliana me perguntou se eu não gostaria de ir lá na casa dela de novo pra tomar banho de piscina. Quase que eu pulei de alegria. Uma, pelo fato de poder descobrir coisas desabonadoras da inimiga; outra, porque tomar banho naquela piscina me parecia uma oferta dos deuses.
Entre um megulho e outro, a Juliana foi se abrindo. E isso simplesmente acabou comigo. Explico:
ela me disse que os pais nunca estavam em casa porque o pai trabalhava demais e a mãe estava sempre viajando. Depois ela disse que nunca chamava as pessoas pra irem na casa dela porque a mãe não gostava de bagunça e havia deixado ordens expressas à governanta pra controlar seus passos e não deixar que a casa ficasse de pernas pro ar... Que coisa! Uma casa tão bonita e ninguém pode ir lá conhecer. Então eu perguntei como foi que ela conseguiu que a gente fosse lá estudar e me convidar pra tomar banho de piscina? “Ah... a minha sorte é que a Dona Maria, a governanta, fica meio incomodada de me ver sozinha sem amigos e faz vista grossa de vez em quando”. Coitada da Juliana Abreu!

Naquela tarde, a Juliana Abreu contou muito mais coisas sobre a vida dela que acabou derretendo meu coração. No final, já com lágrimas nos olhos e paralisada de vergonha eu disse assim: “Olha Ju, eu tenho que confessar uma coisa horrível pra você: eu te achava uma chata de galocha, super-metida que se achava a rainha da cocada. Então eu resolvi ser sua amiga só pra provar pra todo mundo que você não era essa maravilha que todo mundo achava. Mas agora, eu te acho a pessoa mais legal que eu conheço e tô super-feliz de ser sua amiga. Você me desculpa?”
Então a Juliana me deu um abraço e disse que sempre me achou a garota mais sortuda do mundo e que tinha medo de chegar perto de mim porque ela sabia que não gostava dela.
Resumindo: a gente acabou o dia chorando feito duas bezerras desmamadas jurando que a partir daquele dia seríamos “melhores amigas”, daquelas que fazem pacto de fidelidade pro resto da vida, e só nos desgrudamos quando a minha mãe veio me pegar pra voltar pra casa.
Dentro do carro, eu estava tão animada quanto no dia anterior. Falei até ficar cansada sobre tudo o que aconteceu durante a tarde; sobre o quanto a Juliana era legal; sobre como é que eu podia estar tão errada a respeito dela; de que agora em diante a gente seria feito unha e carne; sobre como a Juliana se sentia sozinha porque os pais nunca estavam por perto; blablabla, até que a minha mãe perguntou: “Mas e a piscina?” E eu: “Piscina? Ah a piscina ... legal”.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

como ofender e humilhar pessoas (manual para colocar gente cretina no seu devido lugar)



Deixe-me apresentar: meu nome é Regina e eu tenho 1,50m e 40 quilos; tenho origem japonesa e aquele aspecto de bibelô zen meio débil que todas as japonesas de 1,50m e 40 quilos ostentam.
Minto. Eu não me pareço com um bibelô zen meio débil, minha cara está mais para aprendiz ninja de má-índole, mas como os ocidentais insistem que japoneses são todos iguais e adoram espalhar essa injúrio pelos quatro cantos, eles que se emendem e aprendam a distinguir cobra falsa de cobra coral para seu próprio bem e preservação da espécie.

A questão é que durante os anos em que habito este planeta, e não são poucos, tive que desenvolver algumas técnicas dignas de operação de guerra para não morrer ignorada ou pisoteada neste mundo cão. Atitudes de sobrevivência, à primeira vista, pouco cristãs, mas que com o passar do tempo revelaram-se redentoras e, por que não dizer, catárticas a ponto de eu receber dezenas de centenas de pedidos de conselho e aulas práticas de pessoas que se encontram na mesma situação que a minha quando eu era, vamos dizer, uma ameba.

Vale ressaltar que este não é um tratado bélico com o intuito de despertar o pior dos fracos e oprimidos e chamá-los para o ataque. A proposta deste livro é juntar munição para ser usada quando necessário, bem naquela hora em que somos bombardeadas sem motivo algum e, por alguma razão hormonal, não sabemos o que dizer ou fazer e tudo culmina numa crise solitária de choro horas depois.
Como rezam os preceitos das artes marciais: diga NÃO ao ataque e SIM ao contra-ataque.
Máximas milenares como “Não faça aos outros o que não quer que façam a você” ou “Quem com ferro fere, com ferro será ferido” tão apreciadas por nossas avós, me servem como mote, força motriz. Acredito tanto nesses ditados que minha missão é fazer com que gente menos esclarecida aprenda na marra a força e o poder de tais palavras.

Resolvi escrever este manual depois de um ataque de fúria ao assistir a uma adaptação moderna do “Conde de Montecristo” de Dumas, que vem a ser meu livro favorito com seus exemplos incríveis de vingança e aniquilação moral de todos os fracos d’alma pelo herói revanchista e fascinante.
Na nova adaptação, o politicamente correto impera e a obra vira um pastiche de bondade e lição de perdão. Vê se pode!
Isso é pior do que a versão nova do “atirei um pau no gato” que acabou virando “não atire o pau no gato-to porque o gato-to é bacana-na...”
Tenha santa paciência!

Para facilitar a consulta em momentos de urgência, este livro é separado por temas distintos.
Procurei priorizar situações e eventos nos quais as “avestruzes” (designação que adotarei a partir de agora para me referir às pessoas que têm o péssimo hábito de engolir sapos) se deparam com mais facilidade com gentalha disposta a ferir e magoar egos alheios sem como nem porquê.
Assim, caso a “avestruz” se veja em maus-lençóis no restaurante da moda ou na espera do ginecologista, ela poderá sacar seu Manual, procurar pela seção desejada e desferir impropérios em menos de um minuto. Ou seja, a tempo de não perder o bonde e responder à altura ao agente ofensivo “ab nicio ab ovo”, e não em casa solitária debaixo do chuveiro como de praxe.
Ou seja, reverterá a condição de coitada e sairá do recinto como vitoriosa, aplaudida por todos, deixando o “ser-humano menor” (designação que adotarei a partir de agora para me referir às pessoas que têm o péssimo hábito de achincalhar as “avestruzes”) roxo de vergonha e humilhação, como prevê a lei dos justos.

Com este Manual em mãos, não haverá mais “avestruzes” infelizes no mundo, nem “seres-humanos menores” impunes flanando por aí.
Dê adeus ao indesejado gostinho de sapo na boca e seja bem-vinda ao clubinho das mulheres temidas, respeitadas e felizes!
Viva!


No restaurante

Restaurantes são ambientes em que “seres-humanos menores” se sentem à vontade e proliferam a valer. Quanto mais descolado e moderninho for o ambiente, maiores as chances de contratempos e chateações.
Não que isto seja uma regra – há vida civilizada neste mundinho, mas é raro.
Em restaurantes requintados e caríssimos ou naqueles simplórios de beira de estrada quase não há chance de você ser mal-tratado, ou pior, ignorado. Pode parecer irreal, mas dinheiro em excesso ou a completa falta dele imprimem uma camada de gentileza (ou falsidade) bastante agradáveis aos que por lá circulam.
O problema mesmo são os moderninhos descolados. E olha que nem é preciso ser um “avestruz” para sentir na pele o que é tratamento hostil nesses estabelecimentos.
Música lounge intragável; decoração-padrão desconfortável; frequentadores falsamente bronzeados, exageradamente perfumados e impressionantemente “botoxeados” são até que suportáveis. O problema são as garçonetes-atrizes-modelos.
Esse tipo de “ser-humano menor” acredita piamente que está na função temporariamente e que daqui há algumas semanas estrelará uma campanha internacional milionária. Pobres infelizes iludidas.
Não conheço uma alma viva que não tenha tido algum tipo de stress com essa categoria.
Para esse tipo de situação, três conselhos:

1. Caso você seja ignorada pela garçonete escrota, não tenha dúvidas: estique o pé quando ela passar ao seu lado. È tiro e queda. Esses restaurantes são sempre tão apertados que elas dão rasante em todas as mesas até cairem estateladas no chão com a garrafinha de água fincada na boca sangrando. No mínimo cinco pontos e todos os dentes da frente engolidos.
2. Se seu nível de fúria não estiver tão assassino, banque a difícil. Uma hora, ela vai ter que te ver e anotar o pedido, e é aí que você entra sem dó nem piedade. Peça tudo modificado: hamburger sem carne, salada sem alface, refrigerante diet com um punhado de açucar no copo. Quando chegar o pedido, faça cara de “dai-me forças, pai do céu!” e diga olhando bem em seu rosto: “Querida, você errou tudo. Não foi nada disso que eu pedi”. Como a lambisgóia provavelmente não tem dom para “avestruz”, argumentará que a errada é você, que ela anotou o pedido direitinho e vai querer mostrar a comanda para garantir sua suposta inocência. Crasso engano. Diga, então, que não interessa suas anotações e que você exige a troca de tudo o que está na mesa. Caso ela baixe a guarda e acate, cuidado: não coma nada que chegar à mesa a partir daí. Tudo estará cuspido, escarrado e urinado, com toda a certeza. Mas, caso ela crie caso, vá para o conselho 3.
3. Pior do que uma “avestruz” com ódio de ser “avestruz” é um “ser-humano menor” desafiado por uma “avestruz”. Eles querem morrer de raiva e de vergonha. Quando o incidente toma ares de barraco, é melhor mergulhar fundo e partir pro tudo ou nada. Quando a garçonete resolver engrossar e cantar de galo, é a deixa pra você colocar os pingos nos ii definitivamente. Sem nunca mudar o tom de voz (que sempre deve ser macio e baixo, em todos os momentos da vida), chegue bem perto da infeliz e a ensine a diferença entre ambas (você e ela) naquele ambiente: enquanto você entra pela porta da frente, ela entra pela dos fundos, então é bom ela mexer aquela bunda flácida, ir até a cozinha e trazer tudo o que você mandou do jeito que você mandou. E fim de discussão.


No trânsito

Assalto
Não há nada pior do que ficar preso dentro do seu carro sob um sol de 40°C ou sob chuvas torrenciais típicas deste clima de monções que assola este pedaço de terra. Ou melhor, há sim: saber que há milhares de trombadinhas rondando seu possante sem que você possa fazer nadica de nada. Ledo engano.
Como ninguém é obrigado a portar ar-condicionado (apesar de ser item de primeiríssima necessidade nestes trópicos), aqui vai uma dica para você não morrer de calor com os vidros totalmente fechados enquanto espera o sinal abrir: deixe sempre uma fresta no tamanho aproximado de um punho de criança. No caso de alguma delas (as crianças) tiver a incontrolável vontade de colocar seu punho munido de canivete, caco de vidro ou qualquer outra arma branca para te assaltar, não tenha dúvidas: feche o vidro bem forte e saia andando. Primeiro bem lentamente para que o mini-meliante tenha a chance de se desculpar. Se isso não acontecer, aumente a marcha e saia em disparada até a via expressa mais próxima. Quando estiver no trecho mais movimentado, abra o vidro e deixe o pequeno “ser-humano menor” de menor se ver com os demais motoristas a 120 por hora.

Se o negócio for mais invasivo e a coisa descambar no “passa a grana senão te meto bala”, então é hora de sacrificar o resto de “avestruz” dentro de você e partir para artilharia pesada.
Pegue calmamente a carteira, abra, pegue as notas e as jogue ao vento ao mesmo tempo em que diz com todo o sarcasmo do mundo: “ Se é dinheiro que você quer, então ajoelha e pega!”.


Acidentes
Ser-humano que se preza tem horror a gentalha que pára o trânsito só para assistir de camarote ao acidente alheio.
Que raio de curiosidade mórbida é essa que faz com que as pessoas simplesmente se esqueçam de seus horários e compromissos só para verem de perto o estrago da desgraça dos outros? Eu não sei.
Para esse tipo de gente, eu sugiro que se faça um abaixo-assinado para que se aprove uma lei obrigando quem diminua a marcha ante um acidente grave a parar, socorrer e passar o dia inteiro à disposição da família da vítima.
Se o motorista oferecer resistência alegando compromissos inadiáveis, cem chibatadas serão aplicadas nele, na esposa e nos filhos, se existirem.
Essa lei garantirá, num futuro próximo, o livre escoamento de carros em cidades grandes e o melhor: a transformação de “seres-humanos menores” em pessoas de alma elevada que pensam no coletivo antes do individual e que respeitam a dor de estranhos como se fossem a sua.

Pequenos incidentes
Em muitos casos, envolver-se em pequenos incidentes de trânsito é muito mais danoso do que aqueles em que nosso carro vai parar em pátios de desmanche com perda total.
Tudo por conta dos “seres-humanos menores” motorizados que infestam as cidades brasileiras.
Como é que gente que não atina lé com cré pode dirigir sem causar danos aos mais esclarecidos? Não pode.
Essas criaturas lesam os transeuntes e os demais motoristas e ainda se acham no direito de xingar e tirar satisfações sobre suas próprias limitações.
Mas isso só acontece porque há muitos “avestruzes” como você soltos por aí. Pessoas de bem que não gostam de se envolver em discussões estúpidas e que sabem que comprar briga não vale a pena se o outro lado não estiver à altura.
Caso algum destes seres inacreditáveis cortar, ralar, colidir de leve com seu carro, não perca tempo. Olhe-o de cima a baixo, faça cara de pena e vá embora. Ah, não se esqueça de anotar a placa no caso do pilantra criar caso mais pra frente e resolver faturar algum às suas custas.

Saia-justa com policias de trânsito
Como não sou boba e não quero criar inimizades com a lei, pouco poderei discorrer sobre como humilhar e ofender policias aqui neste espaço. Mas como não sou mulher de baixar o rabo ante à lei, vou narrar um fato que vivi há alguns anos e que ilustra bem como podemos driblar a autoridade e vingar os homens de bem frente à estupidez dos “seres-humanos menores”.
Em frente à casa dos pais de meu marido, havia o consultório de um médico notório na cidade. Aliás, tanto o médico como sua esposa eram figuras conhecidas por todos. Acontece que o tal médido já atendia em outro endereço e mal aparecia por lá. Pelo menos em horário comercial, se é que vocês me entendem.
Quem lá ficava plantada, dia e noite, era a “secretária”, uma japonesa azeda (também casada, soube depois) que logo conquistou a antipatia da vizinhança que de tonta não tinha nada. E num odioso ato conjunto de moralidade, todo o bairro passou a hostilizar a pobre secretária-amázia. Ninguém a cumprimentava, ninguém a aturava, mas ninguém podia fazer nada de efetivo para externar a indignação geral. E no final das contas, sobrou pra mim (que de moralista não tenho nem as rugas) ser a porta-voz de toda uma comunidade contra a pouca-vergonhice vigente.
Numa tarde agitada, não conseguia arranjar vaga para parar meu carro para visitar meus sogros. O único espaço disponível era, justamente, a frente da casa da fofa. Ela me via todo dia e sabia de cor a cor e o modelo do meu possante.
Mas acontece que EU dei a brecha para a japonesa dos infernos se vingar de tudo e de todos e, quando ela avistou meu carro na sua fachada, não pensou duas vezes: chamou a polícia e disse que não conseguia entrar em sua própria garagem porque um vândalo parou o carro bem na frente.
Quando eu saio para ir embora, eis que vejo dois policiais, um caminhão de guincho e a vagabunda com ar de superioridade, todos cercando meu carro. Logicamente que fui soltando fogo pelas ventas dizendo que ela bem sabia que aquele carro era meu e que eu me encontrava na casa da frente; que ela havia feito de propósito, etc e tal.
Claro que eu estava totalmente errada por ter parado o carro aonde não devia, mas isso era irrelevante naquela altura do compeonato.
Então um dos guardas começou a me ameaçar dizendo para eu medir minhas palavras e guardar meus comentários porque senão eu iria apreendida junto com o meu carro e dormiria na delegacia por crime de desacato.
Aquilo subiu feito pimenta nos meus ouvidos.
Ah, não tive dúvida: olhei bem pra japonesa-vaca, depois mirei bem nos olhos do policial cretino e falei bem pausadamente: se o assunto é crime, ela também vai junto comigo dormir na delegacia, porque até onde eu sei, adultério também é crime.
Silêncio.
Então o policial cretino disse: “Você está acusando uma pessoa de uma coisa muito séria. Se isso for uma leviandade da sua parte, você pode se dar muito mal, garota”.
Foi aí que eu pensei: “Estamos fritos mesmo. Dependemos desses idiotas para garantir nossa paz, veja você. É claro que eu estava sendo leviana, sendo a japonesa adúltera ou não. Ninguém, em sã consciência, sai por aí denunciando pra polícia as aventuras sexuais dos outros. Mas eu estava mais enfurecida que uma amamba negra e precisava extravazar. Foi o que fiz e não me arrependo.
Final da história: a japonesa gaguejou e tentou despachar os policiais dizendo que um carro estacionado na frente da garagem dela não tinha tanta importância assim; os policias foram embora bufando e me mandando tomar medicamentos; e ninguém nunca mais viu a japonesa naquelas paragens.
Até hoje, todas a senhoras pregadoras da moral e do bom costume me adoram e me enchem de mimos.
Eu, devo confessar, aproveito ao máximo essas regalias posando de justiceira e paladina dos preceitos de Deus.
Amém.


Com vizinhos idosos

Uma dica preciosa: antes de se mudar para um apartamento ou casa, certifique-se de que não há vizinhas velhas num raio de alguns quilometros acima, abaixo ou em volta de sua nova morada.
Elas são pior que praga: estão por toda parte e são insuportáveis. E o pior é que, uma vez instaladas, elas só saem do aconchego de seus lares num caixão.
Implicam com seus amigos, com suas festas, com seus filhos e, pecado imperdoável, com seus sapatos de salto.
Para lidar com esse tipo de “ser-humano menor com o pé na cova”, alguns conselhos:

- Nunca as deixem entrar em sua casa e nunca entre na casa delas. Parece que esse é um código velado entre as provectas: se vocês passarem a se frequentar, automaticamente, passam a jogar no mesmo time, o das velhas chatas sem função na vida.
- Caso a vizinha velha implique com suas festas e vizinhos, banque a educada à moda antiga e a convide para o próximo rega-bofe. Ela vai ter que engolir o seu ato de fineza e não terá espaço para reclamar de algo que ela também foi incluída (isso em sua cabeça gagá).
- Se o alvo é seu filho, daí é hora de deixar a “avestruz” de lado e incorporar a “Nelore” que habita sua alma. Diga sem arrependimento que você não pretende repreender os seus porque quer que eles crescam com mais liberdade e carinho que os dela, pra que, num futuro remoto, você não acabar como ela: velha, chata e abandonada. Se, por um acaso, ela argumentar que tem filhos maravilhosos que não a abandonaram, olhe em volta, apalpe os bolsos e diga na maior cara-dura: “Cadê que eu não tô vendo?”. Caso ela ainda insista que sua (a dela) família é maravilhosa e que, além de filhos incríveis, ela também tem uma renca de netos igualmente incríveis e EDUCADOS, daí parta para o contra-ataque cego e diga: “Não me diga: foram adotados?”. A vantagem de tripudiar idosos é que eles não têm corpo nem espírito para vinganças sórdidas posteriores.
- Agora, se o mais grave acontecer e a vizinha reclamar dos seus saltos altos martelando em seus tímpanos, a vingança deve vir a galope e a pontapés. Nenhuma mulher deveria implicar com a vaidade de outra mulher. Mas como mulher não é mesmo leal nem confiável, faça com que ela, literalmente, perca a sanidade e lamba o chão em que você pisa. Como? Simples: deixe ela reclamar uma vez. Com toda a calma, diga que não é você a causadora desse desconforto e continue a martelar a paciência da velha com seus saltos-agulha. Deixe ela reclamar duas, três, quatro vezes. Repita a mesma resposta. Na quinta vez, combine com seu marido, namorado ou mesmo uma amiga o seguinte plano: você vai calçar uma pantufinha bem macia, vai descer um andar e tocar a campainha da cretina. Enquanto isso, seu cúmplice vai ficar de quatro com seus sapatos de salto nas mãos e vai caminhar pesadamente como se fosse um pit-bull por toda a extensão da sala. Então, você com cara de inocência dirá: “minha senhora, eu só ando de pantufas em casa e, olha só que coisa, eu estou aqui falando com a senhora enquanto esse barulho infernal continua em algum ponto deste edifício. Lá na minha casa, só está o meu marido que, até onde eu sei, não usa salto. Ou seja: NÃO sou eu quem azucrina a sua vida. Tá compreendido? Passar bem!”. Nesta hora, até vale entrar para um cafezinho como pedido de desculpas da vovó. É infalível!




Na repartição pública

Não há ser humano que nunca tenha se aborrecido com servidores públicos.
Aliás é normal e até um bom sinal. Isso quer dizer que você não é um deles.
Mesmo porque eles fazem de propósito; são preparados, fazem curso de como enlouquecer o cidadão de bem que, por uma desgraça, venha a precisar dos serviços de uma repartição pública.
Quando isso acontece, não há muito sobre o que elocubrar.
Pelos meus anos de experiência em como lidar com “seres-humanos menores”, posso dizer de cátedra que essa espécie é a mais diminuta entre todos os “seres-humanos menores”. Trocando em miúdos, aqui, mais do que em outro caso, não adianta lançar mão de estratégias subjetivas e/ou sutis. Tem é que afogar de vez o “avestruz” engolidor de sapo e meter o pé na porta.
Você, obviamente, chega com toda a delicadeza e finesse que lhe é peculiar. Em retorno, não vai encontrar criaturas grossas ou mal-educadas, e sim uma gente preguiçosa, indolente e, via de regra, incompetente. Incompetente porque nunca teve como exercitar suas funções por total falta de oportunidade.
Daí o serviço é lento, as respostas esdrúxulas e desencontradas e você terá a nítida sensação de que estão te fazendo de bobo.
Você vai tentar argumentar, formar um raciocínio razoável dentro da sua cabeça, procurar sentido naquilo tudo. Em vão. O interlocutor estará impávido na sua frente com aquela pecha de “Não posso fazer nada.”.
Conte até três e então você saberá que é a hora da barbárie.
Caso você esteja acompanhada nesta odisséia, vire para sua companhia e diga em bom tom: “Acho que eu vou meter a mão na cara deste (a) imbecil” e volte ao diálogo como se nada fosse.
O funcionário público, ou ficará mais paralisado ainda ou se chocará com o que acabou de acontecer e finalmente mexerá suas ancas enferrujadas em busca de uma solução para os seus problemas.
É tiro e queda.
Se você estiver sozinha, melhor ainda: diga a mesma frase para seu amigo imaginário.
O impacto será ainda maior.



Na loja

Ser ignorada por uma vendedora quando, na verdade, você está disposta a torrar suas economias naquele estabelecimento é, no mínimo, um ultraje.
Nestas horas, sempre me lembro das palavras sábias de minha mãe: “Se fosse esperta, não seria vendedora. Seria a dona!”.
Aqui vale uma observação: há uma diferença significativa em relação à natureza e à estirpe da loja.
Numa loja popular, convém relevar alguns embates, mesmo porque essas lojas sempre contam com compradores de mais e vendedores de menos. Mas caso o descaso tenha passado dos limites, a velha mímica em frente à vendedora resolve tudo: pegue a infeliz pelo braço, olhe bem em seus olhos, coce a barriga e bata na cabeça como um macaco e diga bem pausadamente: “Uga-uga…. Vendedora – fala – minha - língua?”
Pode escrever: seja uma geladeira ou uma blusinha de helanca, ela será sua com um desconto considerável.

Já numa loja metida a besta, não há nenhum segredo: depois de 15 minutos de total descaso por parte das vendedoras luluzinhas, solte um enfadonho e maldoso: “Ô balconista…por favor, você pode me atender?”.
Não garanto desconto no tailleur Chanel, mas que você será lembrada para todo o sempre naquele estabelecimento, isso sem sombra de dúvidas.


No telemarketing

Este item me dá urtigas só em pensar. Como são incovenientes essas vozes sem corpo que azucrinam nossas vidas, não?

Quando o telemarketing é de prospecção, nem me dou ao trabalho de dar trela. É muito fácil farejar quando uma ligação é de empresas ou associações filantrópicas de olho no seu rico dinheirinho. Pra esses eu digo que a Regina acabou de falecer e caio no choro ato contínuo.

O pior é quando o cartão de crédito, a tv a cabo ou o celular dão chabu e você precisa colocar em pratos limpos que você está em dia com suas obrigações e que o erro, óbvio, é deles.
Aí nem adianta colocar panos quentes. A “Nelore” deve ser incorporada por completo e fazer o serviço de “vaquice” de cabo a rabo.

Vale dizer que eu, inclusive, certa vez fui convidada a me retirar da lista de usuários de um cartão de crédito porque, segundo os advogados do referido, causei danos psicológicos irreparáveis à “profissional” de telemarketing, e que ela agora sobrevive a base de tranquilizantes.
Nem pude me defender dizendo que tal acusação era infundada porque estava tudo gravado e documentado.
Quer dizer: muito cuidado com o que vai falar pra essas vozes sem corpo porque são todos uns fragilizados que não aguentam meia dúzia de verdades jogadas na cara.

Bom, mas como de cada revés extraio lições para a vida, esse incidente me mostrou que não devemos atacar “a pessoa” e sim “a organização”.
Assim sendo, conseguimos retirar das próprias vozes sem corpo confissões desabonadoras a respeito da instituição. Todos têm reclamações a fazer. Mesmo porque são “profissionais” muito explorados, ganham salários de fome e são obrigados a falar com todo tipo de gente. É um trabalho ingrato e insalubre.
Uma vez quebrada a barreira, ter essas vozes como aliadas facilitam muito para que alcancemos nosso intuito de provar que todas essas empresas são capengas e incompetentes para, por que não, eventuais processos de danos psicológicos irreparáveis à minha singela pessoa!
Agora, não podemos ser polianas e achar que todo operador de SAC ou telemarketing é flor que se cheire. Tem muita gente grossa nesse ramo que merece ouvir umas poucas e boas! Quando for esse o caso, não seja burra e nem se faça de rogada. Use a ofensa certa, aquela que é como um crime perfeito, aquela que não dá brecha nem pro melhor dos advogados provar que você ofendeu a pobre voz sem corpo. Diga: “minha querida, você não tem culpa de ser o que é. Nem eu. Então baixe a bola, por favor”. Uhhhh!!!! É como um tiro à queima-roupa... e por legítima defesa, o que é bem melhor!

Bem, trocando em miúdos: olho vivo e língua afiada quando o assunto é telefone e serviços executados nas coxas.
Eu, particularmente, quero que todas essas instituições explodam pelos ares.
Bando de mercenários!

Na gravidez

O que deveria ser um período de plenitude feminina via de regra se transforma num pesadelo de nove meses com direito a prorrogação “ad eternum”.
A gravidez em si não costuma ser problema. O problema são os outros: marido, pais, sogros, amigos, enfim, a sociedade como um todo.
Você de repente se vê no centro de uma série de cobranças alheias, como se já não bastasse as suas próprias cobranças.
Senão vejamos:
1. existe a obrigação de ser uma grávida exemplar daquelas que só comem coisas saudáveis, não engordam além da conta e se mantêm radiante durante todo o processo.
2. existe a obrigação do parto natural com todas as implicações dolorosas que isso acarreta. Ai de você se quiser optar por uma cesariana programada e externar esse desejo aos chatos de plantão. Seu filho nascerá pela boca!
3. existe a obrigação de não entrar em depressão pós-parto, de não cair no choro e não fazer cara de dor enquanto dá de mamar, coisa que só quem já pariu sabe que é impossível.
4. Existe a obrigação de voltar ao peso normal em, no máximo, três meses porque senão você será acusada de desleixada, matrona e trubufu.
5. Existe a obrigação de voltar ao trabalho o mais rápido possível e se mostrar melhor profissional que antes, além de ser uma mãe exemplar (aos olhos do filho e do resto do mundo).
6. Existe a obrigação de criar magistralmente o rebento pra não ser acusada de ausente pelo filho e pelo resto do mundo.
7. Existe a obrigação de expandir seu repertório de assuntos pra não ser acusada de mulher bitolada e espantar amigos e eventuais paqueras.

Ufa!

Agora, se alguém vier te encher o saco além de todo o perrengue existencial listado acima, a sugestão é virar para o agressor com a cara mais alucinada do mundo e dizer em tom de desvario: “Toda mãe é louca, eu sou mãe, portanto eu sou louca, por isso vou te matar AGORA usando meu filho como munição!”
Dito isso, grite e pule no pescoço do ser desprezível que te deixou assim.
Depois acione o advogado para quaisquer possíveis processos de retirada da guarda do seu pimpolho.


Com gentalha preconceituosa e racista

Parece piada, mas a população iletrada do mundo não acha que chamar japonês de “japonês” seja um ato de racismo e preconceito.
Por alguma razão que me foge completamente a compreensão, pra essa gentalha japonês é japonês e ponto final. Não há o que discutir.
Concordo. Assim como preto é preto, alemão é alemão, judeu é judeu, viado é viado e gordo é gordo.
Então nem me avexo: se escuto algo como “Aí japa... vai pagar em cash ou no cheque?” ou então “Depois da japinha, ande 100 metros e vire à esquerda”, eu logo retruco: “O preto pederasta tem troco pra 100?” ou “Além de manco é disléxico? É à direita e não à esquerda, excepcional! ”.
Esta tática é infalível, afinal TODO mundo tem alguma característica peculiar e chamativa. (para as exceções existem os termos “mosca-morta”, “cafezinho-frio”, “songamonga” entre outros).
Ofensas não faltam, graças a Deus!


Ataques-padrão para qualquer eventualidade

Diariamente nos vemos em situações desagradáveis por conta da imbecilidade alheia. Não há como fugir dessa praga. Os idiotas são piores que os ácaros.
Nocivos até a alma, temos que eliminá-los antes que eles nos eliminem.
Mas existem armas simples e poderosas que são capazes de desestruturar até o mais resistente dos idiotas sem que, pra isso, tenhamos que fundir nossa cuquinha pensando numa resposta boa a cada ataque.

-gente burra: é o tipo mais irritante. Você pode perder horas e até dias em vão tentando fazer com que essas criaturas ajam com bom-senso e coerência. Não adianta gastar saliva, temos que atacar na mais superficial das camadas do ego: troque o nome do (a) infeliz.
Por exemplo: se a secretária burra se chama Sheila, insista em chamá-la de Shirley. Uma hora ela vai surtar e dizer: “Meu nome é Sheila e não Shirley!!!”. E você dirá: “Que seja! Quem se importa?” Cruel.

-gente escrota: é o tipo mais perigoso. Com esses, todo cuidado é pouco, mas existe uma fórmula que é tiro e queda. Todo escroto tem o rabo preso e teme que tanta escrotice respingue em seus entes queridos. Assim, dê uma de paranormal, aja sempre como se soubesse mais do que sabe e, no final, dê um jeito de colocar a mãe do sujeito no meio.
Por exemplo: o escroto quer te passar a perna e levar vantagem numa transação financeira. Lute limpo até onde puder e, quando a coisa ficar fedida demais, páre, feche os olhos, concentre-se e faça uma cara de preocupação. Então diga consternado: “A tua mãe tá doente? Não? Que estranho... eu tive uma visão tão clara...você sabe que eu sou clarividente, né? ...agora tudo faz sentido... esse dinheiro tem que ir pra você mesmo... logo, logo você vai precisar muito dele... pra comprar remédios pra tua pobre maezinha, coitada... puxa... tô péssima!”

-gente inútil: eles não são nem tão burros e nem tão escrotos, só inúteis até o rabo apitar. Gente que não sabe a que veio, que não diz coisa com coisa e fica parada quando a fila tem que andar. Tudo sem querer. Pra essa gente, só tem uma solução: dar um tapão e tirá-los da frente com se fossem moscas-varejeiras, antes que elas botem ovinhos na sua comida. Tudo sem querer.

-gente fofoqueira: se o peixe morre pela boca, tem muita piranha de 1,60m por aí que bem merecia acordar com formigas entre os dentes.
Portanto, falou de você, fale de volta.
Mas fale algo que seja matador. Algo que deixe a moral da piranha em questão mais afogada que as vítimas do Bateau-Mouche.
Por exemplo: a vizinha fofoqueira anda espalhando no condomínio que a tua vida sexual é, digamos, volúvel? Ah, não tenha dúvidas: espalhe que você já deu várias vezes pro marido da fofa, inclusive na frente dela que, apesar de frígida, adora tocar uma siririca vendo o marido rebolar numa bela cinta-caralha.
Detalhe: providencie uma cinta-caralha considerável antes de espalhar o boato e diga tudo isso com a dita-cuja em mãos.
Já que você criou a fama, aproveite! Aposto que o casal se muda em menos de duas semanas. Pra outra casa ou pro cemitério. Ou talvez, o marido em questão queira se mudar para a tua casa. Daí é contigo!



Contornando a gafe e dando a volta por cima

Todo mundo já se viu naquela incômoda situação de falar coisas que não deveriam ser ditas naquela hora e local.
Como por exemplo zombar de algum “ser-humano menor” que tenha acabado de fazer alguma bobagem e que, por azar dele, esteja no mesmo recinto que você.
Nestes casos, a clássica “Quem foi que fez uma merda dessas?” pode se tornar uma enorme saia-justa caso o cretino não se aguente em si e diga: “Fui eu, por quê?”.
A não ser que você tenha jogo de cintura para se livrar da vestimenta incômoda (não que não seja providencial e nem salutar ofender mesmo e fazer com que o imbróglio humano saiba que fez besteira e atrapalhou os mais elevados, mas sabe como é: um pouco de educação, às vezes, é bem-vindo). Assim, pra não perder a fama de implacável e nem baixar a guarda, olhe com desprezo o ser desprezível e diga somente: “Ah, entendi tudo.” E saia às gargalhadas.
O outro vai se matar pelas tuas costas.


Encontrando algum “ser-humano menor e esquentado” pela frente

Como tudo na vida tem consequências e é de bom-tom arcar com as que nos tangem, é importante saber que língua afiada atrai gente moralista e/ou esquentada.
O que mais tem neste mundo é gentalha politicamente-correta e aqueles que não podem ouvir umas verdades que já vão logo apontando um trabuco ou um facão na sua direção. Não sei qual espécime é a pior.
Em ambos os casos, saibam que a morte é acessório de série.
Quando nos deparamos com os moralistas politicamente-corretos, a morte vem em forma de suicídio. Porque não dá pra escutar sermão desses “seres-humanos menores” sem querer pular da varanda ou cortar os pulsos com caco de vidro.
Já com os esquentados, o buraco é mais embaixo. Uma dica: não esmoreça e nem baixe a guarda. Vá até às últimas consequências defendendo o seu ponto de vista, fazendo troça do tamanho do três oitão do sujeito, sendo cínico até o idiota não suportar mais e te meter uma bala nos miolos.
Daí é só colher os louros: nada melhor do que morrer com um risinho irônico no canto da boca sob a pecha de estóico, forte, de princípios arraigados, como um verdadeiro herói sabendo que o outro, o fracote, vai apodrecer na cadeia por conta dessa falha de caráter.
E do paraíso, você terá a eternidade para filosofar em cima das idiossincrasias do universo:
“Por que alguns são tão estúpidos e outros beiram o genial?” e “Por que, graças a Deus, faço parte da segunda facção? Por quê?”

Fim.

ficamos muito felizes com a sua presença, obrigado (romance camp-abusado)



1.
Algumas pessoas são feitas perfeitamente à imagem e semelhança de Deus.
Outras são visivelmente superiores.

No que tange à crendice popular, Miquelina Sanchez Matosinho é imbatível.
Noventa e sete anos de estudos empíricos sobre o tema a fizeram autoridade máxima. Pela vida, entre outras coisas, já curou gente de hepatite daquela que mata, fez mongolóide virar galã de novela e, feito dos feitos, reverteu o útero seco da filha Socorrinho e brotou lá dentro quatro bebês: Isolda, Isidoro, Ismênia e Izilda. Todos lindos, uns mais, outros um pouco menos, e inteligentíssimos. Exceto por Ismênia e Isidoro, os gêmeos do meio.

Nascidos de fórceps, até hoje não há explicação médica que convença a gente esclarecida da razão de um parto tão traumático para, no fim, virem a este mundo dois retardados mentais.
Dito assim, parece agressivo, mas não é: Ismênia e Isidoro quase não falam, quase não interagem, quase nunca são relevantes. Por essa razão, pouco falaremos deles dois no decorrer do relato, também em respeito à família Sanchez Matosinho que, para ultraje das ONGs em prol dos direitos das minorias físicas e intelectuais, sentem vergonha, sim, de terem dois filhos songamongas no seio de sua mui tradicional moral classe-média-alta.
Fazer o quê?

O fato é que alguns dos netos de Miquelina sempre foram bastante questionadores -a ponto de à certa altura da vida debochar dos dotes metafísicos da avó que sofre calada, já que jamais proferiu contra seus tesouros aquelas pragas todas que, os que são espertos sabem, são tiro e queda.
Porque, assim como já tirou muita corda do pescoço alheio, dona Miquelina também entrevou, cegou e aniquilou muita gente promissora por puro orgulho ferido.

Voltemos algumas décadas.
Quando Maria do Socorro Sanchez Matosinho, a filha mais velha de Miquelina e do respeitadíssimo advogado civil Doutor Darcy Matosinho, soube que não podia engravidar, foi um deus nos acuda.
O marido, Dagmar Solimões –“um pobretão sem berço que a Socorrinho achou no lixo” como diz a Miquelina em fúria- chorava de soluçar consolado pelo sogro, Doutor Darcy que, por incrível que fosse, estava calmíssimo, talvez antevendo que aquilo era pinto perto das escabrosidades que dona Miquelina já havia resolvido. Dito e feito: assim que soube do diagnóstico –útero seco- dona Miquelina primeiro riu, depois fechou a cara, os olhos, murmurou algo na linha de um mantra da Seicho-No-Iê por uns dois minutinhos e saiu comemorando: “Na falta de um, teremos três netos, Darcy!”
E não é que nove meses cravados a partir daquilo tudo, nasceram não três, mas quatro lindos beberrotes a berrar de cólicas! Esse tropeço de cálculo não agradou de todo dona Miquelina, nada chegada a margens de erro, mas como é sempre melhor pecar pelo excesso do que pela falta, a velha se juntou à turba e comemorou feliz os quadrigêmeos que teriam nomes todos começados por “i”. “I” de “Impossível não existe para Miquelina Sanchez Matosinho”, como gostava de repetir a própria.

Durante os anos que se convencionou chamar de infância, os quadrigêmeos diversificaram as feições e experiências. Cresceram felizes e alheios ao sufoco que foi para todos sustentar e limpar quatro bocas e quatro cus de uma vez, algo aparentemente fácil, afinal quantos já não passaram por essa experiência quadruplamente fantástica na vida e saíram vivos e felizes? Pois esse, em absoluto, não era o caso da Família Sanchez Matosinho Solimões. Pais cansados, pra não dizer arrependidos e um tanto revoltosos; avós educados demais pra dar o braço a torcer e admitir que existiam formas bem mais prazerosas de torrar as economias além da glória que era comprar fraldas a granel toda semana; e crianças insuportavelmente infantis sem nenhuma pausa providencial, por mínima que fosse, em algum segundo do dia.
Parece que a única a questionar a existência da tal infância foi mesmo Izilda, a quarta quadrigêmea.
Izilda foi a última a nascer e, por isso mesmo, a menos esperada. O carisma, também não era lá essas coisas, mas uma coisa há de ser dita: seus irmãos eram de fato umas graças, inclusive “aqueles” e concorrer neste quesito não era tarefa fácil, de modo que Izilda não era uma criança medonha de jeito maneira, só um pouco ofuscada.
Mas problema de verdade surgiu foi mesmo na adolescência. Ali, o que tinha alguma esperança de vingar, foi pro saco junto com os quilos de fraldas que todos eles, sem exceção, teimaram em usar até os onze anos. Izilda, apesar de ser aquela a desenvolver os traços mais finos e delicados dentre as três moçoilas (além do tenro rapaz), passou a cultivar um chocante, incoveniente e espesso buço lá por volta dos treze, quando as meninas viram mocinhas. Buço tal que chegou até a ser festejado por parte da família – a Matosinho, notoriamente lusa e adepta ao culto dos pêlos pelo corpo - antes de fazer derramar os rios de lágrimas que encheriam, fácil fácil, hidrelétricas de médio porte durante os anos negros que afundaram de vez a alegria de viver de Izilda Sanchez Matosinho Solimões.
A família, graças a deus muito bem de vida por crédito de uma loteria que veio bem a calhar e que quase enfartou o Doutor Darcy, tentou de tudo. Laser, cera fria, loção de nêsperas… mas nada demovia os folículos capilares da região central da face da Izilda.
Tudo isso somado à graciosidade de seus três semelhantes, minou a auto-estima da pobrezinha. Izilda cresceu à sombra de sua própria personalidade. Andava na rua fitando o chão e toda vez que algum estranho tentava aproximação com segundas intenções, elas nunca saíam das primeiras, pois o susto causado com o simples erguer de cabeça era tanto que muitos saíam andando sem olhar pra trás; outros tinham a delicadeza de se desculpar e uns poucos, felizmente dois ou três nestes anos todos, tentaram arrancar o mal pela raiz, transformando a fronte da moça em algo parecido com um pastel inchado, arroxeado e pincelado de fiapos negros recheado de dentes. Um horror.

2.
De uns tempos pra cá, Claudinho Souza Santos, partidão da região do Vale do Paraíba, incutiu na cabeça que é hora de sossegar o facho de solteirão convicto. Sua mãe, uma socialite que nunca teve cacife para brilhar em outras paragens a não ser o Vale do Paraíba, encontra-se em pânico com a decisão. Lourdinha B. S. Santos, sua alcunha, ensaia até umas noites de insônia pensando que pistoleiras dos quatro cantos da nação, sabendo dos milhões do clã S. S., lançarão mão de estratagemas dos mais baixos para fisgar sua cria.
Ouvindo falar dessa maneira, o leitor pode até supôr que Claudinho Souza Santos seja um homão desses irresistíveis e cafajestes, mas a verdade é bem outra.
Claudio Souza Santos, Claudinho como se instituiu chamá-lo, filho do maior usineiro do já comentado Vale do Paraíba, Plínio de Azevedo Souza Santos com a decoradora de interiores Maria de Lourdes Barbosa Souza Santos, mede pouco mais de um metro e sessenta e cinco. De estatura e estrutura franzina, Claudinho teve uma infância retraída (apesar dos esforços de sua mãe que, no fundo, preferia um filho autista a um feio) e só perdeu a virgindade aos vinte e três por isistência da mesma mãe. E nem foi pela vergonha de sua miudez. Antes fosse: quando o rapaz completou doze anos, Lourdinha o levou a um especialista a fim de lhe injetar uns quinze centímetros na altura a base de doses cavalares de hormônios masculinos. Não obteve resultado. Ou melhor, obteve sim: pêlos. Pêlos grossos, compridos e negros por toda a extensão de seu corpo: das sobrancelhas que se uniram acima do nariz, até o dedo do pé que, devido à pelagem, aumentou em um número o calçado do rapaz.
Por essas e outras, não é de se estranhar que, mesmo sendo um jovem pacato e tímido, Claudinho Souza Santos demorou tanto a querer se casar. Mas a questão é: apesar da facilidade em arranjar quem o queira acrescido dos milhões na conta bancária, terá Claudinho coragem de se entregar de alma e corpo a uma moça e acreditar que há amor ou, no mínimo, química sexual entre os dois? Quem será a escolhida? Uma zoófila?
Lourdinha já nem come mais remoendo essas idéias, como se, há trinta anos, não fosse ela a pistoleira da hora. Mas, como antigamente as coisas eram bem mais fáceis, pêlos não constava da lista de revezes do então jovem mas não menos trouxa Plínio de Azevedo Souza Santos.

3.
Quando criança, dona Miquelina tinha sonhos estranhos que não entendia. Sonhos turbulentos, malucos, que deixavam a cama ensopada e o coração acelerado. Pensava que ia morrer, mas se morrer fosse tão bom, já sabia o que seria quando crescesse: suicida.
Um dia, resolveu averiguar de onde saía aquele aguaceiro todo, percorreu o rastro no lençol e chegou até à boceta que na época respondia por “florzinha”.
Pensou que sofria de incontinência urinária e padeceu sozinha com a idéia de voltar a usar fraldas. Que nada. Mijar era bom mas não proporcionava aquela sensação de vapores e calafrios ao mesmo tempo que dava vontade de chorar de alegria. Era um mijo potencializado, mais encorpado, que parecia vir não da bexiga, mas da alma. Fosse o que fosse aquele líquido todo, Miquelina queria mais. Quando finalmente descobriu do que se tratava, era tarde demais: já estava comprometida com o jovem Darcy Matosinho.
Como advogado em formação, o noivo não tinha tempo para assuntos carnais. Resultado: a noivinha foi secando, secando até virar uma passa humana. O desejo continuava ali, mas sem ter por onde, Miquelina não viu outra alternativa a não ser pensar em outras coisas. Foi assim que virou essa sumidade do ocultismo que é hoje.
Se for contar nos dedos o número de orgasmos da Miquelina, além daqueles maravilhosos do tempo de menina, eles coincidem com o número de filhos que teve. Dois. Um orgasmo chamado Maria do Socorro, como sabemos, e um outro posterior de nome Modesto.

O que dizer de Modesto? Por hora, pouca coisa. Um sujeito discreto e que teve a sorte de ter um nome que diz tudo sobre sua pessoa. Modesto é modesto, mas, no seu caso, essa característica não determina qualidade. Modesto é modesto porque não tem mesmo muito do que se gabar. Não se sobressai na profissão, nem no físico, nem no intelecto e nem em outras categorias que fazem do homem comum, um ser especial.
Modesto não se casou por N fatores. Primeiro, porque não surgiram pretendentes. As poucas que esboçaram interesse, foram afujentadas por Miquelina que passava a ter visões desabonadoras de todas elas. Segundo porque é gay. Isso, até agora, é segredo. Modesto, por ser modesto, não dá pinta. Ninguém diz que um sujeito tão sem atrativos como aquele pode ser gay. Ninguém mesmo.
Tio Modesto, como é chamado em família, não gosta de festas de família. Não bebe, não fuma e quase nada tem a ver com aquela gente toda. Seu maior desgosto na vida, mesmo que não admita nem sob tortura, é ter uma irmã chamada Socorro. “Que tipo de mulher tem a infelicidade de se chamar Maria do Socorro e deixa que a chamem de Socorrinho?” Se fosse ele, já teria entrado na justiça e mudado de nome há muito. “Essa mania de colocar na mulherada esses nomes de lugares ermos onde a Nossa Senhora resolveu dar as caras nunca foi boa idéia”.

4.
Plínio de Azevedo Souza Santos já nasceu milionário.
Seu pai, um engraxate que virou o “rei do açúcar mascavo” em incríveis três anos, deu ao filho único uma vida de pachá.
Sempre o mais bem-vestido da escola, o do cabelo mais bem cortado do bairro, Plínio era o genro que toda sogra pedia a deus. “Um príncipe!”, repetiam as mães das coleguinhas do científico. O problema é que esse assanhamento todo só ficava no nível das progenitoras. As meninas não davam a menor pelota para o pequeno magnata e isso, obviamente, provocou um vazio que nem tudo o que o açúcar mascavo podia comprar preenchia.
Assim, Plínio cresceu com a sexualidade descalibrada. Aos vinte e quatro, virgem sem querer ser, só conseguiu furar o desbloqueio psicológico quando conheceu Lourdinha Barbosa.
Lourdinha Barbosa, paulistana do Tatuapé, era famosa na Zona Leste. “Miss Porca Dentada 1974” eleita pela “Associação das Retíficas de Motores de Grande Porte do ABC”, a moça era um pedaço de mau-caminho. Mau, muito mau.
De infância pobre e pais desajustados, Loudinha era realmente linda e nada confiável. Aos dezesseis, já havia visto e vivido mais coisas que muita puta velha dos tempos da Mãe Joana.
Esperta como poucas, sabia usar seu único trunfo –a beleza- com uma destreza exemplar. Conhecia de cor a ficha completa de todas as cinquenta maiores heranças do sudeste com menos de vinte e cinco, e não media esforços para armar um encontro tète-a tète com a maioria deles.
Depois de vinte tentativas frustradas com playboys desalmados que, sabendo da fama desabonadora da beldade só a queriam para o sexo, Lourdinha literalmente caiu no colo de Plínio de Azevedo Souza Santos.
De passagem pelo Vale do Paraíba em missão diplomática como “Miss Porca Dentada 1974”, Lourdinha virou a fixação erótica de Plínio. E, num evento cujo palco era bamba, a representante máxima da beleza operária do ABC prendeu o salto num sarrafo mal fixado e pum! caiu de boca em cheio na braguilha endurecida do ricaço.
Daí pra frente, a coisa deslanchou. De “Miss Porca Dentada” a “Princesinha do Açúcar Mascavo” foi um flash e, antes mesmo da maioridade, Lourdinha Barbosa Souza Santos já estava pronta para parir o herdeiro de todas aquelas toneladas de açúcar semi-refinado: Claudinho Souza Santos.

5.
Este é um dia triste na casa dos Sanchez Matosinho.
Doutor Darcy acaba de morrer. Morte estranha que, por conta da influência da família, será abafada por completo. Caixão lacrado e tudo.
Para todos os efeitos, o digníssimo Doutor Darcy morreu de mal súbito. Não deixa de ser verdade, mas o que anda correndo à boca pequena é que ele teve um peripaque em cima de uma sirigaita qualquer daquelas que ele empregava na “Matosinho e Matosinho Associados S/A”, o escritório de advocacia que ele mantinha com o irmão Durval, também advogado dos bons.
Essa “sirigaita qualquer” merece um parágrafo à parte. “Sirigaita” sim, “qualquer” não. Rosiclair Barbosa, vinte e cinco anos, sempre quis ser advogada. Apesar do intelecto a desejar, a moça era dada a devaneios idealistas -acreditava realmente na importância civil de um advogado no seio de uma sociedade saudável. Mas, devido à pouca sinapse, Rosiclair só conseguiu vaga numa dessas faculdades obscuras com nome corruptelado. É claro que a facção abastada da família teve que intervir para que conseguisse estágio em algum escritório de renome, caso contrário, não chegaria nem à porta da cadeia. Foi assim que a tia Lourdinha Barbosa, a irmã rica de sua mãe Luzinha, foi convocada para botar a mão na massa.
Lourdinha, nossa velha conhecida, apesar de brilhar apenas no circuito do Vale do Paraíba, tinha alguns bons contatos na capital dos tempos em que era apenas uma pistoleira à procura. É dessa época a ligação de Lourdinha com Doutor Darcy que a socialite tratou de reatar no ato, só para não importunar o marido rico com sua família jeca.
Não, Lourdinha e Darcy não tiveram um caso, apesar dos esforços deste em. Lourdinha já tinha alvo definido e, garota obstinada que era, não iria gastar energia em outro foco. Assim, Doutor Darcy foi apenas um amigo fortuito dos tempos de vaca magra. Depois disso, ambos prosperaram e nunca mais se cruzaram. Até a sobrinha Rosiclair precisar de um estágio há uns 5 meses.
Lourdinha, que de tímida não tem nada, nem se importou com as décadas em branco e ficou dando searchs na internet até descobrir o telefone do velho amigo.
Doutor Darcy, inesperadamente, se mostrou bastante receptivo e acenou com uma vaga na hora. Ficou um pouco reticente quanto à aparência da indicada mas no dia seguinte, quando a estudante se apresentou para a entrevista, Doutor Darcy ficou bastante aliviado, para não dizer aceso.
De modo que ninguém, fora a família e os asseclas, sabe que o respeitadíssimo Doutor Darcy morreu em cima de Rosiclair.
Pobre Rosiclair, nem imagina que esse incidente no currículo pode garantir a ela um futuro tão rosa quanto o de sua tia Lourdinha. Dentro de alguns dias, ao abrirem o testamento do Doutor Darcy, todos saberão que sua parte nos negócios irá parar nas mãos da estagiária aplicada sem pausa nem escala. Vontade do falecido.
A partir daqui, o respeitado Doutor Darcy se transformará no “filha da puta do Darcy, aquele ignóbil que cuspiu na cara da família depois de morto; aquele que trocou seus entes queridos por um rabo de saia barato de tecido sintético”. Doutor Darcy já era.

6.
Modesto e Socorrinho, além de órfãos, agora estão em maus lençóis financeiros.
Modesto nem tanto, porque nunca foi dado a luxo e ostentação. Pra ele, os cinco salários que ganha como auxiliar na mesma empresa de que fora herdeiro um dia bastam. Sua permanência na recém-rebatizada “Barbosa e Matosinho Associados SA” é encarada pela Doutora Rosiclair como amostra de sua benevolência e que mágoa é coisa que existe só do outro lado da história.
Já Socorrinho, que além de perdulária tem quatro bocas e quatro cus pra alimentar e limpar praticamente sozinha (uma vez que Dagmar está desempregado há uns bons seis anos), está descabelada de desespero. Mesmo com os filhos adultos, os gastos continuam altos. E para quem um dia foi criada a pão de ló, se acostumar com pãozinho sovado não é bolinho.
Socorrinho, desde o terrível acontecido, passa suas noites a arquitetar mil modos de levantar dinheiro enquanto Dagmar só faz roncar. Até que na noite passada veio a luz: vender o único bem que sobrou do espólio: a mansão dos Sanchez Matosinho. O único empencilho é Dona Miquelina, mas esta, supõe Socorrinho, não vai criar objeções de ir morar num confortável asilo. Afinal de contas, resta o quê? Dois, três anos de vida? Isso com otimismo.

7.
Dona Miquelina não se conforma até hoje por não ter antevisto a presepada que “aquele filha da puta” estava aprontando pra ela. Também pudera: sempre fora muito mais dada às causas alheias do que às suas próprias e, com quatro netos a atazanar as pestanas, nem mesmo a Zora Yonara farejaria uma sujeira daquelas.
Depois de algumas noites de desespero e descrédito total na raça masculina, Miquelina resolveu que já é hora de dar a volta por cima. Aos poucos, aqueles mesmos sonhos que sonhava na época do colégio voltaram a alegrar suas noites e, como já não há mais pra quem preparar a janta, a viúva pode cair nos braços de Morfeu mais cedo todo dia.
Isolda, a gêmea mais velha, resolveu morar com dona Miquelina desde a morte do “filha da puta”. Não conhece mesmo a avó que tem: acha que, se deixada sozinha, dona Miquelina pode cometer algum desbaratino.

Isolda é a perdida da família. Entregou-se aos rapazes em tenra idade e foi jogada no limbo também em tenra idade.
Dagmar acredita piamente que a filha é puta. Não diz nada porque não se sente no direito, já que não coloca um tostão dentro de casa e sempre foi um pai pra lá de ausente.
Os irmãos não têm tantos escrúpulos. Isidoro já quebrou os dentes de uns sete engraçadinhos que saíram contando pelo bairro detalhes da anatonia “símia” da garota. É débil, mas é homem. Isolda, inclusive, também não tem mais os dentes da frente devido a um acesso de moralidade do irmão biruta.
As outras meninas não dizem nada. Só ficam a imaginar como vai ser na vez delas, porque boceta peluda é marca registrada da família. Antes terem a mesma sorte da mãe que se casou com um banana discreto, do que cair nas mãos desses meninos sem coração que acham que boceta peluda não traumatiza quem as carrega.
Mas todo esse devio de conduta tem uma origem: aos nove, Isolda teve que escolher entre o cabaço ou a vida.
Ainda de chupeta e fraldas, numa bela manhã a guria surpreendeu ao menstruar no flocgel.
Aturdida, Socorrinho, prevendo o desconforto que seria o modess dentro do fraldão, não pensou duas vezes e enfiou um mini OB na criatura. Tudo parecia bem, mas no fim do dia, o OB simplismente desapareceu dentro da Isolda. Explicação médica: os movimentos peristálticos decorrentes do sugamento da chupeta, criaram um efeito tampão que, como uma mega-ventosa, engoliu o absorvente que ficou preso em algum lugar entre o hímen (infelizmente não elástico) e a garganta da infeliz. E, entre tirar por cima ou por baixo, optou-se por baixo. Assim, aos nove, Isolda Sanchez Matosinho Solimões já estava liberada para deitar na cama e criar a fama.

Voltando: Isolda está a morar com a avó e, é claro, notou os ruídos violentos que vêm do quarto da velha à noite e a surpreendente disposição desta a cada manhã despertada.
A princípio, ficou meio assim de perguntar o que é que rola, mas a curiosidade falou mais alto e, num belo dia, não se conteve.
“Vó, o que é que tá acontecendo?”
“Do que cê tá falando, criatura?”
“A senhora deveria estar de luto, não?”
“Ah…era só o que me faltava: uma neta vagabunda e moralista. Ai meu santo Padre Inácio!”
“Vó!!!! Eu só quero saber a razão dessa alegria toda. Tô te dizendo que se fosse eu, tava chorando embaixo da pia sem parar até hoje!”
“Pois é. Essa é a diferença. E eu lá sou mulher de ficar chorando em cima do corpo de salafrário que me chifrou e me deixou com uma mão na frente e outra atrás?”
“Vovozinha, meu amor. Então fala pra mim… o que acontece dentro daquele quarto? A senhora, por acaso, tá recebendo visitas noturnas pelas minhas costas?”
“Pelas suas costas? Essa é boa! Não te devo satisfações, Isoldinha. Nunca te perguntei sobre essa sua boceta laceada ou esse cuzinho despregueado que eu sei que você tem”.
“Vovó!”
“E não é verdade? Vai falar pra mim que é mentira? Vai, abaixa essa calça que eu quero contar as pregas”
“Chega! Não quero saber de mais nada. Faça o que bem entender. Dê enquanto é tempo, sua velha safada…nunca vi: noventa e sete anos na cara e agora resolve cair de paixão!”
“Que paixão?! Quem falou de paixão? É só sexo, minha princesa…paixão é aquela música da Rosemary!”
“Rose quem?”
“Rosemary, a nossa Dalida, a vedete da ditadura”.
“Quê que é Rosemary? Dalida?”
“Ai, iletrada…”

8.
“Mãe? Você não sabe: a vovó tá de caso”.
“Como assim, Isolda? Tá de caso?”
“É, tá dando toda noite no quarto dela!”
“O quê!?! Pra quem!?!”
“Sei lá, nunca vi o cara.”
“Ah, mas você é tonta mesmo, né Isolda! Eu te mando pra aí pra você vigiar a sua avó e você me diz que ela tá dando pra alguém que você não tem a menor idéia de quem é?
“De quem seja, mamãe…”
“Quê?”
“De quem seja. O correto é dizer ‘de quem seja” e não “de quem é”
“Ah, vá pro inferno, você! E vê se descobre quem é esse…esse…aventureiro!”
“Só mais uma coisa, mamãe. Quem é Rosemary que canta Paixão?”
“Rosemary…a nossa Dalida, por quê?”

9.
Claudinho Souza Santos resolve procurar uma agência matrimonial. Acha que essa é a melhor maneira de conhecer mulheres direitas que queiram se casar com ele pelo homem que é, e não pelos milhões de dólares que representa.
Acorda cedo, pega o carro do motorista (não o carro que o motorista dirige, mas o que o motorista possui, ou seja, um chevette horroroso 1985), e sai em direção à capital, bem longe do Vale do Paraíba, antro que, acredita, não há moça solteira que não conheça sua conta bancária.
Chega à “Loveland Matrimônios Inc.” pouco antes das 14h00 e preenche uma ficha detalhada sobre suas preferências e sobre o que não quer de jeito nenhum. Quando chega a hora de traçar um perfil sobre sua pessoa, esquece de citar seu problema hormonal; não fala um “A” sobre sua condição financeira e volta para casa bastante esperançoso.
Já em casa, sua mãe lhe comunica que, logo à noitinha, será servido um jantar para a prima Rosiclair, lá da capital, que subiu na vida e quer mostrar que agora faz parte da rodinha, “se é que você me entende”, e que seria bom se ele, Claudinho, estivesse de corpo presente porque, já que agora a jequinha faz parte da rodinha, por que não juntar o patromônio e fazer um casamento em família? Coisa que Claudinho, na atual conjuntura, até vê com bons olhos.
Aproveitando o restinho da tarde, o rapaz se empenha em parecer o mais apresentável possível. Até depilação no pescoço fez.
Na hora do jantar, com o coração a milhão, mãos suadas, Claudinho treme diante do mulherão que é a Rosiclair. Bem aparentada, ela sempre foi (vide o caso fatal do finado Darcy que não resistiu aos encantos da fofa), mas agora, com as roupas certas, o cabelo adequado, sem falar nas unhas lixadas , Rosiclair é mulher pra 300 talheres Christofle.
Lourdinha gosta do que vê, já vislumbrando netos lindos e altos; Plínio ainda mais, mesmo porque Rosiclair mantém no olhar aquela qualidade oblíqua de mulher não lapidada que ele tanto implica que Lourdinha havia perdido; já Claudinho, passada tensão inicial, também está inclinado a se engraçar com a prima. Só resta saber se por ela tudo bem.
O jantar corre dentro dos conformes: Janete, a criada, desta vez acerta o lado no serviço à francesa e não trouba com Tobias, o mordomo, e nem derrama molho pardo em nenhum dos convivas. Mas Rosiclair está um tanto trêmula porque percebe o teor da recepção, chegando a confidenciar aos seus botões de madrepérola que está se sentindo uma escrava branca negociada em praça pública. Até seus dentes são avaliados, com muita discrição é claro, pela prima chique. Pelo menos, pensa ela, passou no teste da finesse (que é o que mais importa). Ser aprovada pela prima Lourdinha e seus aparentados é uma vitória e tanto.
O ambiente austero “nouveau riche” da mansão Souza Santos também não ajuda a Rosiclair a relaxar.
Os sofás alvíssimos dispostos em V para as poltronas bergère igualmente brancas, tudo sobre o tapete extra large 4 x 4 de pele de carneiro albino, mais as paredes “antique white” repletas de arte abstrata predominantemente branca formam um interessante porém opressor efeito “ton sur ton” ou, como prefere a Lourdinha, “white on white”.
À mesa de mogno maciço passado por processo de oxigenação para ficar no mesmo tom embranquecido do resto do ambiente, e sobre as Bertóias de aço inox reluzentes que desfiam as Tri-Fil da convidada, Lourdinha parece especialmente disposta a mostrar todo o poder que o dinheiro confere às mulheres saídas do subúrbio como ela e a impressionável da Rosiclair.
Na hora do licor “Amarula, é docinho, uma delícia…dá uma bicada que você vai ficar de joelhos!”, finalmente vem o assédio.
“Rosi, minha flor, mas eu estou felicíssima em te ver assim tão bem! Nem parece aquela pobretona que veio me pedir um favor uns tempos atrás… Desse jeito, vou acabar ficando com ciúmes, não sou mais a chique da família, hahaha!”.
Rosiclair gelou. Sabe que isso tem uma ponta de verdade.
“Quê isso, prima Lourdinha! Você está nessa vida há muito mais tempo, deve ter tantas coisas pra me ensinar. Imagina você que eu fico até hoje insegura com bolsa e sapato. Uma vez eu li que se mede o quilate de uma mulher pelos acessórios, né? Depois disso, eu fico uma vara verde toda vez que tenho que combinar bolsa e sapato pra ir num evento chique como esse aqui”.
“Besteira, querida…o importante é ser você mesma. Se sentindo bem, pode andar até de Dunes”, replica a maldosa da Lourdinha. “Mas então, vamos ao que interessa”, introduz a ricaça, “vendo você assim tão encaminhada, com uma carreira de sucesso pela frente, fiquei aqui matutando se não seria uma ótima idéia se você e o meu Claudinho se conhecessem melhor…sabe como é: eu ficaria tão feliz, mas tão feliz se vocês se acertassem que eu acho que eu faria o casamento mais acintoso que esse Vale já viu na vida, não que isso seja um desafio…”.
“Mas prima…”
“Me chame de Lourdinha, querida”.
“OK…Lourdinha, eu mal conheço o Claudinho…essas coisas demoram um tempo…precisa rolar uma química, um elán…”
“E eu não sei? Por isso é que eu acho que vocês deveriam ir tomar um ar no jardim a sós, afinal está uma noite tão agradável, nem quente nem fria demais…nesta época não dá pernilongo…vão lá, vão, meus pombinhos!”.
Sem escapatória, os dois vão.

10.
Izilda Matosinho Solimões já está de pé antes das sete horas e vai até à “Loveland Matrimonial Inc.”, indicada pela amiga Jeruza Cabrera que “ouviu dizer” que lá se arruma marido até pra Belzebu.
Vestida com sua melhor roupa -o que não garante elegância, em absoluto-, Izilda não se faz notar no mundaréu de gente encalhada. Só consegue ser atendida três horas depois e, mesmo assim, vai ter que esperar na fila mais umas duas horas e meia para preencher todas as fichas necessárias. Fica um pouco indecisa na hora de listar as qualidades que espera de um marido. Só lhe vem à cabeça pedir que, fosse quem fosse, não pode ser muito peludo (de macaco, já basta ela); bigode, então, nem pensar. Tem ojeriza.
Volta pra casa um pouco desanimada porque a recepcionista não fez questão de disfarçar a cara de nojo quando viu de perto a selva de pêlos na face, até bonitinha, da portuguesa.
Quando adentra a sala, já quase noite, é surpreendida pela irmã Ismênia que, pasmem!, conversa animadamente com um amigo bem jeitosinho e, à primeira vista, lisinho de tudo. “É de um desses que eu preciso!”, suspira a peluda.
Com o rabo do olho, Izilda tenta abstrair o papo da irmã mas, não se aguentando de curiosidade, quer ser introduzida.
“Ismênia, sua mal-educada, não vai me apresentar não?”, ataca direta.
Ismênia, meio molóide e a contragosto: “Esta é a minha irmã Izilda. Izilda, Jussara; Jussara, Izilda”.
Neste momento, os olhos de Izilda atingem duas vezes e meio o tamanho normal. Pigarreando e gaguejando, Izilda diz: “Jussara!?! Muit…muito prazer”.
“O prazer é toooodo meu”, devolve sacana, a Jussara.
Depois de feitas as cordialidades, a colega “engana trouxa” de Ismênia, trata de comer a gêmeazinha caçula da amiga com os olhos, nariz e ouvidos.
Izilda, bastante constrangida, só concatena com clareza o esquisito da situação já na cama, com três doses de Amarula (o único goró que consegue engolir porque “é docinho, uma delícia!”) e o telefone da Juju (“me chama assim, eu prefiro”) no guardanapo. “Se a Ismênia sabe que a Juju me deu o telefone dela escondido…ela vai dar com a língua nos dentes e eu ainda apanho de cinta no meio da sala…mas também, a culpa é dela, quem manda trazer essas sapatas pra dentro de casa?”, conclui antes de cair no sono e sonhar coisas com as quais jamais, em sã consciência, sonharia.

11.
“É Jonnathan o nome do rapaz”, dispara irritada a Miquelina.
“Mamãe, tome tenência! Quantos anos tem esse…Jonnathan?”
“Não sei. Só sei que é mais novo que eu, porque mais velho não é possível”.
“Pára com isso, mamãe. Isso não é brincadeira. De onde você conhece essa pessoa?”
“Da vida, Socorrinho, da vida”.
“O que as pessoas vão dizer disso, mamãe? Até parece que a senhora não tá nem aí pra memória do papai”.
“Tô CA-GAN-DO pra memória do teu pai!”.
“Mamãe!”
“CA-GAN-DO!”
“Bom, tô te ligando pra dizer que eu e o Modesto estamos pensando em vender a mansão e…”
“O quê!?! Vender a mansão? Mas nem sobre o meu cadáver!”
“Mas mamãe, num asilo você vai ter condições mais propícias pra sua idade. Já pensou se você cai no banheiro e quebra a bacia? Além de tudo, a gente vai ter que cuidar de você entrevada numa cama. Você acha que isso é justo?”
“Olha, Socorrinho: eu sei lá que tipo de ser humano eu pari, mas uma coisa eu te digo: você pode se mostrar a crápula que for, nada vai me convencer a vender essa casa, porque eu ainda sou a dona dessa biboca. Portanto, se você e aquele apagado do seu irmão querem surrupiar meu patrimônio, vão ter que esperar a minha morte. Ah, falando nisso, lamento dizer, mas não pretendo morrer tão cedo. Quero viver até os cento e vinte, pelo menos, até porque vou me casar e vou trazer meu marido pra morar aqui comigo!”.
“Mamãe!!!!!!”
“Mamãe o caralho! Vai trabalhar, sanguessuga!”
Colerizada mas sem perder a opacidade do pó de arroz, Dona Miquelina desliga o telefone na cara da filha desnaturada.

Johnny, que ouve tudo e nada diz, então toma sua amada nos braços e tasca-lhe um beijo que, agora sim, faz sua tez brilhar de frisson luxuriante.

Um menino de família. Essa é a melhor definição para Jonnathan Azulanil. Ainda criança, viu os pais se matarem na sua frente no meio de uma discussão acalorada, enquanto o pai limpava as espingardas de sua vasta coleção.
No auge do bate-boca, a arma disparou, acertando em cheio o fígado da mãe. Esta, sangrando e contorcida em caretas bisonhas, ainda teve a presença de espírito de caminhar até às demais pistolas repousadas na escrivaninha, pegar a mais vistosa, mirar no cônjuge em choque, e atirar bem no centro de tudo. Resultado: dois mortos, um fígado e duas bolas a repousar no Aubusson séc. XVII de família, diante de um guri catatônico e extasiado ao mesmo tempo.
Como se isso não bastasse para aniquilar de vez a sanidade de qualquer ser existente, Johnny foi parar na casa da avó viúva, de quem nunca ouvira falar antes.
O que o juizado não imaginava é que a senhora em questão não era a mais indicada para criar criança alguma. Pedófila, Alzira Madureira usou e abusou do menor por anos a fio, mais precisamente até Johnny atingir a maioridade e pôr fim naquela festa do caqui. Entenda-se “pôr fim” como homicídio culposo, caso não fosse doloso; não chegou a ser julgado porque ninguém deu por falta do corpo da velha papa-anjo. Assim sendo, sob os olhos da justiça, Jonnathan é cidadão limpo e acima de qualquer suspeita torpe.
Todo esse histórico não determina que Johnny, o doce Johnny, seja um meliante ou um psicopata que vá fazer algum mal à indefesa da Miquelina.
Segundo especialistas em comportamento humano, é mais provável que Johnny realmente ame Miquelina, numa espécie de transferência da imagem erótica da avó que, vista sob esse prisma, só fez abrir os olhos do pequeno neto à luxúria mundana.
Assim que bateu o olho na figura maternal de Miquelina, Johnny soube que era ali que estava seu futuro. O cabelo com rinsagem, as pernas mapeadas de vigorosas varizes, os vestidinhos de “vó judia Park Avenue”…tudo era tão familiar e remetia a um universo nostálgico de prazer que tirou o jovem do eixo.
Aproximou-se com timidez, afinal não sabia como aquela meiga vovó reagiria e, fazendo a linha jovem burro, perguntou se o roxo do cabelo era natural. Miquelina achou graça na pergunta e, enlaçando seus braços na cintura do formosão, o conduziu pelo caminho de casa e, já lá dentro, pelo caminho do quarto, onde permanecem praticamente até agora.
Mas, ao que tudo indica, Johnny esconde algo sobre sua pessoa. Algo torto e bem fedido.

12.
Dois dias depois, o celular do Claudinho toca. É Cibele, a agente matrimonial da Loveland Matrimonial Inc.
Prestativa, Cibele diz que está ligando para informar que “uma jovem está sendo reservada para ele estar conhecendo ainda esta noite. A pretendente vai estar esperando por ele na porta do Bar Lombardi com uma rosa na boca. Ah, já ia esquecendo: a jovem vai estar se chamando Izilda. Tá anotando?”.

“Izilda. Que raio de nome é esse? Deve ser portuguesa. Puta que pariu: devia ter avisado que não curtia mulher peluda. Achei que fosse desnecessário, já que mulher peluda é exceção neste mundo. Mas pelo jeito não é”, Claudinho Souza Santos está de mau-humor. “Não sei não…será que vale a pena ir lá checar o material? A história com a prima Rosi tá indo tão bem, mamãe está contentíssima e isso é…aliviante!”.

Na hora e no lugar combinados, Claudinho vê suas desconfianças se concretizarem feito pedras nos rins:
“A tal com a rosa na boca tem pelugem. Ou será a folhagem da rosa que na penúmbra engana o olhar? Nada disso. Aquilo é bigode. E dos espessos! Será que eu vou até lá? Ou dou meia volta e peço a Rosiclair em casamento?”

“O que é que eu tô fazendo aqui com essa flor ridícula na boca?”, medita a Izilda. “Pelo menos deve disfarçar a porra do buço… Será que eles anotaram a problemática dos pêlos?… Ai minha Virgem Maria! Tem um mandril vindo na minha direção. Um mandril vestido de playboy! Não! É uma pessoa aquilo lá! Aiaiai, eles fizeram de propósito: eu pedi um cara lisinho e eles me mandam um homo-sapiens…Deus do céu! Será que já dá pra tirar essa rosa da boca? Estão me machucando esses espinhos…Acho que eu vou sair correndo e me declarar pra Juju. Puta que pariu!!!”.

13.
Surpreendentemente, passado o mal-estar inicial, Izilda e Claudinho se entendem perfeitamente bem. Ambos tiveram as mesmas dificuldades pela vida e, apesar da atração física ser impossível, estão em vias de ser tornar bons amigos e confidentes.
É amor fraterno à primeira vista e a conversa, em instantes, toma rumos picantes.

“Seu pinto também é peludo?”, quer saber a Izilda.
“Claro, quer ver?”, retruca o Claudinho.
“Não, não. É que a xereca não é a parte mais peluda da minha anatomia. Se fosse comparar com meus braços e meu bigodão, posso dizer que a minha prexeca é um bebê de tão lisinha.”
“Que engraçado né? Geralmente é na cona que a mulherada exercita o direito à liberdade de expressão”.
“Não é o meu caso. Mas ainda bem que as coisas são assim, e que a gente não vai cruzar, digo, transar. Já pensou? Se eu tivesse uma xavasca peluda e desse pra você me comer com o teu pau cabeludo, no fim do coito teria uma trança no meu útero. Terrível!”.
Claudinho não sabe o que dizer, então fica quieto.
Assim, se despedem e combinam de se ligar no dia seguinte para continuar a troca de experiências.

14.
Tomada de ódio e expelindo bílis pela casa hipotecada, Socorrinho quer, do fundo do coração, que a mãe morra. De câncer. No cérebro. Agonizando de dor.
Dagmar tenta contornar a situação, dizendo que é pecado pensar essas coisas. E, quanto mais a Socorrinho pragueja barbaridades, mais o Dagmar explica que aquilo é em vão, porque a Dona Miquelina, com certeza, já está com o corpo fechado e de trato feito com o demo pra reverter tudo em dobro contra ela, Socorrinho.
No auge da crise, toca o telefone. É a Jussara disfarçando a voz procurando pela Izilda. No que o Dagmar diz que a Izilda não se encontra, a Jussara engole o ar pela via errada e tem um acesso de tosse violentíssimo. Confusa, desliga o telefone.
“Só me faltava essa. Meus filhos envolvidos com esses viados. E é bichinha tísica e mal-educada, ainda por cima”.

Bem na hora em que a Jussara passava por esse papelão com o Dagmar, a Izilda tentava falar com ela pelo celular, deixando o seguinte recado na caixa postal:

“Juju, aqui é a Izilda, a irmã da Ismênia. Eu sei que é meio precipitado, afinal a gente se conheceu outro dia, mas é que desde aquele dia, eu não consigo pensar em outra coisa. Você tem que entender que isso vem me deixando confusa, porque ser lésbica nunca fez parte dos meus planos. Mas vamos ao que interessa. Faz um tempo que eu tenho tido vontade de me casar. Nunca levei essa idéia a cabo porque, como você deve ter percebido, eu tenho buço e outras pelugens consideráveis. Pode parecer descabido, mas isso impede que eu faça uma série de coisas importantes na minha vida. Casar é a principal delas. Primeiro porque os homens não querem ver minha cara nem pintada na frente, literalmente. Segundo porque isso me traumatizou num grau que eu não posso nem cogitar em fazer sexo com alguém que também tenha pêlos no corpo. O que limita meu leque de opções no que tange aos homens. Só me restam os índios e os japoneses. Quanto aos japoneses, existe a questão da altura. Eles são baixos e eu tenho um metro e oitenta e sete, patético; quanto aos índios, eu não conheço nenhum…”

Neste momento, o espaço de mensagens se esgota, obrigando a Izilda a fazer outra ligação para completar o raciocínio.

“Juju, sou eu, a Izilda. Retomando: …então. E hoje eu tive um encontro com o mais peludo dos homens, isso na minha concepção, porque, obviamente, eu não conheço todos os homens. Mas esse cara passa pelos mesmos dramas que eu e a gente conversou bastante à respeito e ele me fez enxergar uma série de coisas que, até então, estavam nebulosas pra mim. Ele me fez acordar pra questão de que se não pode ser índio nem japonês, eu vou ter que apelar às mulheres. Isso sem contar na opção das vítimas de alguma anomalia ou síndrome, dessas que fazem cair os pêlos e a pessoa fica que nem o Kojak. Então, eu pensei imediatamente em você. Que você anda me tirando o sono, isso eu nem preciso dizer. Agora, que você pode ser um marido em potencial pra mim, isso eu só concatenei agora. Por isso eu tô te ligando…”

Cai a linha de novo e, dessa vez, não tem mais espaço na caixa postal da Juju.

15.
Quando escuta a mensagem na caixa postal, Jussara urina de alegria.
É assim desde pequena: não pode receber uma boa notícia que mija mesmo. Um vexame. Por isso o apelido “Jussara Mijamija” como é conhecida no meio lésbico. De modo que, agora, molhada e feliz da vida, Juju não sabe se liga de volta para a amada, ou estoura uma champagne para comemorar. Concluiu ser melhor a primeira opção…“champagne é coisa de boiola”.

“Por favor, a Izilda?”
“Quem gostaria?”
“Jussara, uma amiga”.
“Jussara? Ah…a mesma de agora há pouco. Tá bom. Nome de guerra né? Vai meu filho, qual é o nome de verdade?”
“Como é que é?”
“Tá pensando que eu sou trouxa? Se o teu nome é Jussara, o meu é Watusi. Vai bicha de merda, desembucha…o que você quer com a minha filha?”
“Ah, o senhor é o pai da Izilda? Muito prazer: queria dizer que o senhor tem uma filha de ouro, aliás, duas: a Ismênia também é uma ótima garota!”
“Você conhece a Ismênia também?”
“Claro, estudamos juntas no Lar Escola Nossa Senhora do Alento às Querubinas Desprovidas”.
“Ué? Mas lá só entra menina. Você é mulher mesmo?”
“Sou, pelo menos por enquanto…”
“Puxa, menina. Desculpa a grosseria, mas é que você tem uma voz esquisitíssima. Parece viado falando!”
“Eu sei… já apanhei na rua por isso”.
“Não diga! Que horror! Esse mundo tá cada vez mais virado…espera que eu vou chamar a Izilda. Juízo hein! E muito prazer!”
“Igualmente!”

Assim, voz com voz, na intimidade via Embratel, as duas apaixonadas podem se declarar e fazer planos para o futuro. O que a família, a sociedade, os amigos vão achar desse amor que não ousa dizer o nome? Não importa. O que importa é que de agora em diante, nada vai separá-las, nada será páreo para esse idílio inominável.

No lado do Vale do Paraíba, as coisas não vão tão bem. Mesmo com tanta torcida à favor, o amor de Claudinho e Rosiclair não vingou. Rosiclair, agora profissional bem-sucedida, não é mulher de forno e fogão, como queria o Claudinho; e Claudinho, apesar de toda a fortuna, é quase um mandril, como bem expressou a amiga Izilda. Rosiclair, na atual posição, pode comprar homens muito mais aprazíveis do que aquele cavalheiro travestido de pré-histórico. De modo que, para lamento geral dos envolvidos, a coisa desandou.

Solitário, com o coração partido, cada vez mais disposto a fazer qualquer coisa para casar e procriar, Claudinho está se apaixonando pela amiga e confidente Izilda. Mesmo sabendo que isso é errado, Claudinho, quando viu, já estava irreversivelmente tomado de amores pela portuguesa de pêlos fartos. Como é a vida: pêlos, tudo o que Claudinho mais abomina numa mulher, é tudo o que Izilda mais possui naquele corpazil de quase dois metros.
É o pequeno mandril e a monga descomunal.


16.
Mesmo apaixonada, Miquelina não deixa de se ocupar com o bem-estar da neta favorita. E entre um sexo e outro com o rapazola que ela um dia catou pra chamar de seu, a velha tem visões pra lá de estarrecedoras. Primeiro elas não vinham assim tão nítidas: eram dois corpos grandes e curvilíneos a rolar na grama. Depois é que ela pôde ver que é a Izilda que rola com uma coisa que não dá pra ver se é homem ou mulher. Mas, como o amor tudo entende, Miquelina dá graças quando vê a xereca da coisa indefinida. “Ah, finalmente a Izilda pensou com a cabeça! Se ela não pode com pêlos, não adianta procurar homem por aí. Tem que ser mulher…ou algo parecido.”
Mas, ao mesmo tempo em que vê a aura rosa em volta da neta e da namorada, também vê uma aura marrom quase preta em torno do resto da família. “Ah, gente tacanha! Meu deus do céu: como é que toda essa gentalha saiu a partir de mim? Como Johnny?”
Johnny nem escuta as lamúrias de sua Miquizinha. Está concentrado em algo que deixa a amázia atônita: o rapaz assiste ao funeral da Rainha-Mãe da Antiga Tchecoslováquia com o pau na mão.
“Mas o que é isso, Johnny!? Você está se masturbando vendo o féretro de Sua Majestade?”
“É que ela lembra tanto a minha avó…”
“Mas não é possível. A tua avó abusou de você a vida toda e você presta homenagens a este…este…monstro!? É por isso que você está aqui comigo? O teu negócio é a mulherada com o pé na cova? Tudo bem ter atração por senhoras, mas bater punheta na minha frente vendo o presunto da rainha pela televisão é demais!”.
“Puxa Miquizinha, eu pensei que você fosse mais cabeça aberta! E, pra seu governo, eu tenho tara é por velhas mortas. E até onde eu sei, você tá bem vivinha, né? E eu digo isso pra você não pensar que eu te vejo como mero brinquedo sexual. Eu te amo! Mas tenho esse tesão por cadáveres de velhas . O que é que eu posso fazer?”
“Você jura que não está comigo só por capricho sexual?”
“Juro! E acho que já te dei provas mais que suficientes disso”.
“Isso lá é verdade. Mas, me diz: o que te dá tesão nessas velhas mortas?”
“Ah, tudo: a carne dura, a pele violeta, o geladinho de dentro…é como comer uma jaca congelada. Ui…já tô de pau duro de novo!”
“Mas aí pela televisão nem mostra o corpo da velha. Só esse caixão com a bandeira em cima.”
“Ué, é pra isso que serve a imaginação, ou não?”
“Ok. Mas, quero deixar claro que eu fico com ciuminho…”
“Ora, Miquizinha…Elas são só corpo. Você é corpo, alma e paixão!”
“Paixão…paixão…paixão…como era bonita essa canção, não?”

17.
Quando o dia nasce torto, é melhor voltar pra cama ou se intoxicar de aspirina.

Socorrinho Matosinho acorda com aura de enxaqueca, mas a ignora. Vai até o caixa eletrônico a cem metros de casa, cruza com alguém que pode jurar ser a Gilmara Sanchez, uma antiga jurada de calouros do Raul Gil que há anos não aparece no vídeo. Depois pensa bem e conclui ser impossível aquela ser a Gilmara Sanchez, porque a moça do caixa se parece com a Gilmara Sanchez de priscas eras e, a contar pelo seu próprio envelhecimento, percebe que, à essa altura do campeonato, a Gilmara Sanchez de verdade dever estar mais murcha que maracujá de gaveta. Logo ela, a Gilmara Sanchez que a Socorrinho cresceu achando que era a mulher mais linda do mundo e dizia pra todo mundo que era sua prima por conta do mesmo sobrenome, e que iria batizar a primeira filha como Gilmara, etc, etc. O tempo passou, a Gilmara Sanchez virou uma lembrança bem feiosa, a primeira filha nasceu e se chamou Isolda… Puxa, onde andará a Gilmara Sanchez?
Chegando ao caixa, a Socorrinho introduz o cartão magnético e quer sacar dois mil reais a fim de se livrar de alguns agiotas que, desde o dia em que seu pai fez o favor de morrer sem deixar um puto para a família, vêm ficando cada vez mais agressivos e mal-educados.
Qual não é a surpresa da Socorrinho, quando o caixa eletrônico se recusa a executar a operação acusando saldo insuficiente.
“Saldo insuficiente? Como assim? Vendemos os carros há menos de um mês e o dinheiro já evaporou? Ai…tá cada vez mais duro manter o padrão de vida neste país…”, diz em voz alta para todo o resto da fila, inclusive para a Gilmara Sanchez que ainda não cruzou a esquina; e, entre chocada e constrangida, Socorrinho esmurra o caixa eletrônico, dá meia-volta e volta pra casa. À essa altura, a cabeça da pobrezinha já lateja mais que pau de tarado.
Ao contar o dissabor da manhã para o marido Dagmar, este dá o golpe de misericórdia que há muito ensaiava dar:
“Eu só vejo uma solução: ou a gente interna a sua mãe num asilo bem em conta, ou dá um fim na velha”.
“Você tá dizendo matar a mamãe?”
“Sim…o destino natural de todo velho não é morrer? Que mal há em acelerar o inevitável?”
“Olha…dizendo assim, até parece bem plausível, mas acho que não teria coragem de dar fim nela não, Dag!”
“Não, minha flor, disso eu cuido. Concordo que dar cabo da sogra é diferente que dar cabo da mãe. É menos pecado, parece.”
“Mas e o Modesto? Ele não vai concordar com isso.”
“E desde quando o Modesto precisa concordar com alguma coisa?”

De trás da porta, Izildinha escuta a tudo perplexa. Primeiro porque não sabia que a situação da família era tão periclitante; segundo porque não é nada fácil descobrir que os pais são o cão em pessoa; psicopatas que deixam a Sicrane Von Bitchtoven com pecha de santa.
Desconsolada e em pânico, Izildinha concatena consigo mesma que sua felicidade sexual é pinto perto da salvação da honra da família Sanchez Matosinho Solimões. Para evitar que seus pais se tornem assassinos frios e monstruosos e, principalmente, que sua avó vire presunto roxo, só há uma alternativa: ceder aos galanteios do (segundo seu íntimo mais íntimo) asquerosamente peludo, porém gentil e milionário Claudinho Souza Santos.

18.
Do alto de seu escritório de 200m2 no quadragésimo andar de um dos Robocops da zona sul, a Rosiclair não está com cabeça para os processos em cima da mesa de mármore travertino. Está seca por sexo.
Desde que o Doutor Darcy morreu, Rosi se fechou para a libido. Toda vez que o pensamento resvala em pecado, a doutora canaliza tudo para o trabalho e, nesse ínterim, já conseguiu colocar três na cadeia e uns dezoito pra fora do país. Mas hoje, a coisa tá periclitante.
Nesse momento, entra o Modesto, misto de boy e faz-tudo de meia idade com o agravante de ter sido o filho do antigo patrão. Ou seja: um inútil encostado.
Sem ter alguém melhor para chorar as pitangas, Rosiclair decide se abrir “ab nicio ab ovo”, como se diz no jargão latino da lei.
Modesto, com a modéstia que lhe é peculiar, se atém a dizer: “Eu não tenho capacidade de resolver seu problema, doutora. Mas sei quem pode”.
Rosiclair, num salto, se põe de pé: “Quem!?!”
“Meu sobrinho Isidoro”, replica o funcionário.
“O retardado, neto do Darcy?”, quase cai pra trás a patroa.
“Este mesmo. Sabe como é a fama desses lesadinhos da cabeça né? Têm um fogo que dá gosto de ver!”
“Será que não é crime?”, indaga a Rosiclair.
“Crime é ver uma mulher assim tão bonita e poderosa sem ter quem dê jeito”.
“Isso é verdade. Chama esse menino agora!”.

Duas horas e muita lascívia depois, Isidoro –o retardado- é contratado como novo secretário particular da Doutora Rosiclair Barbosa após de ter passado com louvor no teste do sofá Chesterfield.
Fazendo juz à fama dos fracos das idéias, Isidoro se mostra um amante como a doutora jamais vira na vida. Deixa a performance do finado avô a ver navios no ranking íntimo da magistrada que, ainda arfante de tantos orgasmos encavalados, só tem uma preocupação: o que será quando a Socorrinho e a Miquelina souberem que mais um macho do clã Sanchez Matosinho foi abatido pela predadora Rosiclair Barbosa?
“Não esquenta. Qualquer coisa, eu passo o pincel nelas duas também”, encerra o prático Isidoro.
Rosiclair, pasma, decide que é hora do rapaz comparecer ao RH.




19.
Claudinho recebe o telefonema de Izilda com o coração floreado. Marcam um encontro e o rapaz sente lá no fundo que vem boas novas por aí e, sabendo da aversão da moça por pêlos em geral, veste sua melhor cacharrel e fica a postos até às duas da tarde, imaginando se, à época do nascimento dos herdeiros, a medicina já estará avançada a ponto de haver tratamentos indolores e definitivos para combater a abundância capilar corporal já na primeira idade.
Em meio a esses devaneios esperançosos, eis que a campainha toca e a criada anuncia a presença de Izilda no living.
Aqui, o coração de Claudinho bate a casa dos 200bpm.

Izildinha não está com o que se convencionou chamar de semblante esfuziante. Apesar de prestes a tomar a decisão mais importante de sua vida, Izilda é só melancolia.
Em contrapartida, enquanto escuta o que Izilda tem a dizer, Claudinho arranca dois tufos de pêlos dos braços de tanta excitação.

Cumpridas as formalidades da demanda e da oferta, os dois começam a planejar as bodas em si. Izilda não quer nada muito ostensivo, mesmo porque festa não combina com seu estado de espírito. Seu coração pertence a Jussara Mijamija e Claudinho sabe disso.
Do lado do noivo, as coisas são bem mais espalhafatosas.
O noivo não se contém de felicidade e passa a delirar cada vez mais com os preparativos; Lourdinha, apesar de perceber à primeira vista que a futura nora não diferencia sardela de alichela, muito menos Gucci de Pucci, faz questão de preparar a festa “comme il faut”. Ou seja: guiada pela filosofia do “não custa tentar tirar a moça do subúrbio, mesmo sabendo que o subúrbio nunca vai sair de dentro da moça”; Plínio, por sua vez, parece apenas aliviado com o desprovimento estético da noiva do filho, o que lhe evitará pensamentos escusos e nada católicos, algo que desestruturaria sua família de maneira atroz.

A família da noiva, apesar de exultante com o enlace, mal pode participar dos preparativos por conta da hostilidade com que a noiva recebe suas investidas. A única a ter livre acesso a todos os detalhes é a velha Miquelina que, desde o princípio, fez questão de ser a dama de honra da cerimônia.
Esse detalhe deixa a Lourdinha um tanto apreensiva, porque ela nunca vira um casamento com uma pagem velha. Só depois de consultar uma conhecida expert em etiqueta cerimonial que lhe garante que tudo que é feito com o coração é válido, a Lourdinha sossega.
Mesmo sabendo que o que a Izilda está fazendo é, única e exclusivamente, em prol de sua dignidade e bem-estar, a Socorrinho também não engole de bom grado tanta indiferença. Mas fica quieta porque é bem vendida, a safada.

20.
Com a proximidade do dia D, os ânimos gerais estão em polvorosa. Principalmente os de Dona Miquelina que está impaciente com sua participação como daminha. Depois de tudo combinado, a velha cai em si que talvez essa não seja tão boa idéia. Não quer ofuscar o brilho da netinha de modo algum e, uma velha coroca vestida de virgenzinha com flores de laranjeira na cabeça “não é algo pra se passar desapercebido, não é não Johnnyzinho?”
“Puxa Miquezinha, se era pra você ficar assim, nem devia ter sugerido essa idéia”.
“Eu sei, meu amor, mas é que pela Izildinha eu até entro pelada na Capela Sistina”.
“Falando nisso, Miquezinha…você pensou no que eu te propus?”
“Não sei, Johnnyzinho…é muito perigoso”.
“Que nada. É uma prova de amor que você vai dar pra mim”.
“Isso é chantagem mas…ok, eu vou”.
“É por isso que eu te amo, minha anciãzinha linda cuti-cuti!”

Dezoito horas depois, Johnatan Azulanil Junior e Miquelina Sanchez Matosinho são autuados em flagrante sob a acusação de atentado violento ao pudor, nus em cima de uma pobre indigente de idade aproximada de uns oitenta e oito anos, no necrotério municipal.
Um escândalo! No dia seguinte, os jornais noticiarão com os mesmos termos acima todo o ocorrido, acompanhado de fotos e depoimento de familiares, dentre os quais os reproduzidos abaixo:

“Ela sempre foi (desculpe a expressão) tarada. Uma velha tarada, falando um portugués bem chulo. Ah, e outra coisa esquisita é essa mania que ela tem de dizer que vê o futuro e outras coisas que a gente que é normal não vê: fantasma, gente atrás da porta, atrás do fio do telefone…sei lá. Pra mim isso é fajutagem porque se ela vê as coisas mesmo, porque não descobre o número da mega-sena, né não?” _ Samira Pimentel, 72, vizinha.

“Esse rapaz foi a ruína da vida da mamãe. Quando ela resolveu que iria anular sua vida sexual e canalizar tudo pro outro lado, todos nós saímos ganhando: ela via coisas, ajudava a coletividade e só fazia o bem. Depois que ela passou a se engraçar com esse moleque, ela só pensa em fazer esse tipo de sexo…como vocês chamam mesmo? Bizarro? Isso…escreve aí “sexo bizarro. Minha mãe trocou a clarividência pelo sexo bizarro!” _Socorro Solimões, 47, filha.

“Eu não vejo a menor graça nessa história. Eu que sou jovem e bastante ativo (tosse), me seguro e procuro não perder tempo com esse tipo de gente. Daí vem a mamãe, velha, paranormal, e se entrega a esses aventureiros que tá na cara que só querem o que temos na nossa conta bancária. Eu sei, eles entortam a nossa cabeça de um jeito! Quer dizer, a cabeça das mulheres (tosse)…”_Modesto Matosinho, 44, filho.

21.
Modesto está na delegacia assinando os papéis para libertar “o casal da pá virada”, como a mídia carinhosamente os batizou.
Preocupado em não esticar demais o olho pra cima do cacho de sua própria mãe, o rebento enrustido só mira os vergões vermelhos enormes que a velha Miquelina exibe no cangote. E através deles (os vergões), Modesto se perde em devaneios em base no tamanho avantajado da arcada dentária daquele potro em forma de homem que “por que raios achou graça na caquética da mamãe?”!
Sob fiança, Miquelina senta no banco de trás do carro, Modesto fecha a porta e sinaliza com a cabeça que o lugar de Johnny é na frente, ao lado dele.
“Johnny, que além de necrófilo tem um passado “curioso-pederasta” em suas próprias palavras, está sacando direitinho qual é a do enteadozinho.
Modesto dirige em marcha lenta para não escapar o câmbio de suas mãos suadas. A cada curva para a esquerda, a coxa de potro do Johnny esbarra “sem querer” na mão direita cada vez mais suada de Modesto.
A Miquelina, coitada, dorme feito um anjo aposentado no banco de trás.

Modesto sua em bicas e não vê a hora de saltar do carro e pular de alegria.
Nem a hipótese de trair a própria mãe o deixa menos histérico. De certo teme a reação da velha que, bem provavelmente, terá um surto e empacotará de vez. O que viria bem a calhar, uma vez que se isso acontecesse, o resto da família estaria tão, mas tão contente que o deixariam em paz para viver seu idílio romântico na plenitude desse amor proibido.
Mal sabe o Modesto que a Miquelina, em seu transe dentro do carro, previu tudo. Tintim por tintim.

A visão de Miquelina foi por meio de metáforas.
Primeiro vislumbrou um belo coqueiro com lindas folhas balançando ao vento. Nessas folhas, pousaram um canário e um beija-flor. Não se sabe bem como, mas Miquelina sabia que ambos eram machos e que, se estavam juntos e tão felizes em cima daquela folha tão longínqua, era porque estavam aprontando alguma. Prestando atenção na movimentação de seus bicos, Miquelina leu todo o diálogo sujo daqueles dois seres tão belos em sua singeleza:

“Eu sei que você me ama, meu canariozinho tesudo!”
“Isso é errado. Eu tenho esposa e em breve terei filhos que, por sinal, eu deveria estar chocando”.
“Essa vida familiar vai contra a sua natureza. Veja só: você escolheu a canário-fêmea mais velha da redondeza. Pra quê! Pra não ter que comparecer porque você sabe que daqui a pouco ela entra na menopauza e não vai mais querer se engraçar com você”.
“Você não sabe de nada. Ela já se encontra na menopauza e eu continuo comendo a minha senhora com muito gosto!”
“Sei…mas vive arrastando asa pra cima de mim que eu sei”.
“Eu…eu estou confuso. Não sei mais o que é certo ou errado…Mas eu tenho que admitir que a minha vontade agora é voar para baixo das suas asas e me acasalar com você e me perder entre suas penas sedosas e…ahhhhh”.

Neste ponto, Miquelina acorda assustada e com um terrível pressentimento.
Pelo sim, pelo não, finge dormir até chegar em casa.

22.
Dias antes do casamento, o improvável acontece: Izilda está perdendo os pêlos. Estressada como ela só, as unhas já haviam virado tôco há muito e, na falta de algo melhor, Izilda está comendo seus pêlos. Primeiro os compridos, depois os médios e agora os curtos. Izilda já está inclusive com as sobrancelhas na espessura ideal.
Quem está vibrante com esse stress todo é Lourdinha que começa a perder a vergonha de apresentar a futura nora nas rodinhas das quais frequenta no Vale do Paraíba.
O impasse atual é que sem os pêlos que tanto incomodam nossa pobre mocinha, ela nem se sente mais tão ultrajada com a aparência de carpete do noivo. Sim, meus senhores: Izildinha já olha Claudinho com olhos mais complacentes. E como mulher quando baixa a guarda é porque quer se apaixonar, já podemos afirmar que Izilda se casará por amor, por que não?
Pobre Jussara Mijamija.

Claudinho anda nauzeabundo com a novidade. Decerto está bastante alegre com o fato de que sua monguinha já não é mais tão vergonhosa e que seu coração agora pertence a ele. Mas auto-estima nunca foi seu forte.
Claudinho Souza Santos não sabe o que fazer com tantas coisas boas caindo no seu colo.

Os preparativos para as bodas andam de vento em popa. Buffet contratado, menu aprovado, as flores encomendadas, o vestido da noiva já adaptado para a novidade, agora será aberto no ventre e os braços estarão à mostra. Tudo anda bastante bem.

Dentro das instalações do clã Sanchez Matosinho, o caos se instalou.
Sem saber ao certo qual será o tema da cerimônia, as mulheres andam inseguras com o figurino. Além do já sabido tabu em relação ao branco, Isolda, Ismênia e Socorrinho estão a pular muidinho para preparar seus vestidos. Mesmo sem saber direito das coisas boas da vida, Socorrinho bem sabe que vestido de festa barato parece coisa de crente no domingo. E dinheiro é coisa de que elas, definitivamente, não dispõem no momento.
“Dagmar, a gente NÃO pode fazer feio. Aquela azeda da Lourdinha vai secar todas nós dos pés à cabeça e a gente vai virar pó de tanta vergonha. Quanto ao sapato, eu já sei: vou mandar fazer vestidos beeem longos pra não mostrar os sapatos que vão ser os mesmos de sempre. Agora…e a estola e o bolerinho e a casquete…essas coisas?”
Dagmar: “Hein?”
Na mesma noite, sentada no sofá assistindo “E o Vento Levou” pela enésima vez, Socorrinho tem o insight que vai salvar a pele de toda a sua prole e principalmente a sua: lembrou que as cortinas da mansão Sanchez Matosinho são da época da vaca gorda. Tudo coisa de primeira que, se a velha não vai mesmo para o asilo que é o seu lugar, vai ter que, ao menos, ceder as cortinas afinal, fazem parte de sua parte na herança.
E assim ficou decidido que todas as mulheres da família Sanchez Matosinho irão ao casamento do ano no Vale do Paraíba vestidas de shantung pêssego. Com direito a bolerinho e casquete no mesmo padrão.


23.
Com tanta pulga atrás da orelha, Miquelina não teve tempo de pensar no seu traje de daminha. Mas não é nada trágico, afinal de contas, ela sempre manteve todos os seus vestidos de festa desde os sete anos, quando comungou pela primeira vez. E, pelas suas contas de cabeça, seu corpo hoje em dia não é muito diferente do daquela época.
Enquanto faz suas meditações adicionadas de espionagem atrás da porta, Miquelina vê algo que não está querendo ver. Ao invés de materializar seu filho copulando com seu namorado, a velha vidente acaba de enxergar a ex de sua neta cortando os pulsos. Ela mesma: Jussara Mijamija nunca mais mijou de alegria e só chora pelos cantos desde que Izilda lhe pediu para nunca mais a procurar, afinal de contas ela havia encontrado finalmente o amor de sua vida.
Benevolente como poucas, Miquelina deixa seus problemas de lado e vai até o paradeiro da pobre lésbica do coração partido e lhe oferece uma mão amiga.

“Dona Miquelina! Eu agradeço sua preocupação, mas sua neta fez o favor de acabar com os meus dias. Hoje sou um espectro do que já fui. Já nem me chamo mais Jussara Mijamija. Agora, os que me conhecem, me chamam pela pejorativa alcunha de “Sapata Vaso Ruim”, tamanha é a minha vontade de morrer e não conseguir. Já pulei do oitavo andar, já tomei cicuta, já joguei televisão ligada dentro da jacuzzi, e o máximo que eu consegui foram esses arranhões aqui na canela. Eu sou uma negação! Eu quero morrer! Eu quero morrer!”

Partida em duas de tanta piedade, Dona Miquelina tasca um tapa bem no meio da face da pobre suicida.

“Minha querida, isso dói mais em mim do que em você, mas você está fora de si. Veja bem, pense friamente: a Izilda é um amor de pessoa, mas é muito feinha, coitada. E você, apesar de ser essa caminhoneira, é bonita de rosto. Você tem que procurar alguém que seja assim bonitinha que nem você, senão já viu né? A gente acha que pode amar o feio, mas o feio só pode ser amado se acrescido de algo bem valioso. E a Izilda, na atual condição, não tem nada de valioso pra te oferecer. Só um amontoado de pêlos que, se eu fosse sapata, ia vomitar de nojo. Pêlo é coisa de homem, e homem é tudo o que você não precisa na vida, não é mesmo, docinho?”

Contente de salvar mais uma alma do limbo, Miquelina volta aos seus problemas. Problemas estes, cada vez mais pungentes.
Ao abrir a porta de casa, Miquelina já sabe o que a espera. Os gemidos vindos do quarto de casal não a deixam ter esperanças brandas.
A cena a seguir é por demais chocante e justifica completamente a morte súbita da matriarca dos Sanchez Matosinho. Santa para uns, devassa desavergonhada para outros, Dona Miquelina morre sem sentir dor. Pelo menos fisicamente, já que seu coração se encontra dilacerado de tanto horror, pavor e traição.

Assim que o corpo de Miquelina se esvai no chão de carpete creme, Modesto é tomado de um leve arrependimento que dura até seus olhos cruzarem os olhos penetrantes cor de mel do amante Johnny.
Cabe a este pular da cama para cima do corpo já sem vida da velhaca e socar tão forte quanto possível o torax enrugado de sua Miqui, amada Miqui. Tudo em vão.

24.
A notícia chega como uma bomba aos ouvidos de todos. O incrível é que, independente do ocorrido suscitar alegria ou tristeza, nenhum desses sentimentos diz respeito diretamente à morte da velha Miquelina.
Socorrinho, filhos e marido falidos, obviamente, riem por dentro só pensando no quanto vale a mansão no mercado imobiliário de hoje; o Modesto, graças ao alívio n’alma por não mais viver em pecado, não consegue esconder o riso frouxo toda vez que lembra que a mãe empacotou; os Souza Santos, principalmente a Lourdinha, como não têm a menor relação emocional com a defunta, acham que foi providência divina seus convidados serem poupados do choque de ver a Miquelina subindo na nave vestida de daminha, pajem ou o que for; a Izilda parece ser a única a derramar alguma lágrima pela memória da avó querida. Mas mesmo ela, que tanto amava e, se não entendia, ao menos respeitava os atos tresloucados da velha, não dispõe de muito tempo para chorar o que não tem mais volta. Afinal, como dizem os letrados: “Inês agora é morta” e há muito o que fazer além de chorar, velar e enterrar a vovó Miquelina.
Pronto. Este é o ponto: não há tempo para parar tudo à essa altura do campeonato e fazer as pompas fúnebres devidas e obrigatórias.
“Já sei!”, diz a Ismênia, aquela que ninguém dava ouvidos por ser retardada. “Vamos embalsamar a vovó, depois da festa velamos, enterramos e fazemos a missa. O que acham?”, continuou.
“Ótimo!”, comemora a Socorrinho, já dentro de seu traje de shantung pêssego.
De repente toca o telefone e é a Izilda lá do Vale do Paraíba dizendo que não pode se casar rompida com toda a família e que depois da tragédia da Miquelina, ela ponderou que a vida é mesmo muito curta e louca e que ela não gostaria de perder mais nem um minuto com essas picuinhas materiais contra os entes que tanto ama. Socorrinho escuta a tudo com lágrimas escorrendo na sua cara já maquiada, mas ela nem liga. Afinal, a maquiadora ainda está lá no quarto tentando dar um trato na cara débil da Ismênia, pobre diaba.

“Que isso, minha filha. Eu sei que nós nos amamos muito e eu abençoaria esse matrimônio mesmo se você mandasse dez seguranças me botarem da igreja pra fora. Izilda, meu amor, desejo toda a felicidade do mundo pra você e o Claudinho…eu soube que você está belíssima sem pêlos e tal…não vejo a hora de te dar um abraço grande e ouvir a Ave Maria na voz do Agnaldo Rayol que eu sei que a tua sogra contratou só pra cantar quando você entrar toda de branco…aiiiii, tô arrepiada!”
“Mamãe…tem uma coisa que eu gostaria que você fizesse: queria muito que vocês trouxessem a vovó junto”.
“Como é que é?”
“Eu pensei que como ela está embalsamada, não custaria nada se vocês trouxessem ela junto. Tem lugar no carro, não tem?”
“O problema não é esse, minha filha. É que não é meio chocante a presença dela lá na igreja, na festa? Todo mundo sabe que ela morreu e você sabe como são as pessoas né? Tem gente que não gosta muito de ver defunto na frente. Principalmente em ocasiões festivas”.
“Mas é o meu casamento e eu convido quem eu bem entender. E a vovó desde sempre foi convidada de honra!”
“Olha, vou conversar com seu pai e nos falamos mais tarde, ok?”

25.
Duas horas para o grande momento.
Em toda a região do Vale do Paraíba, não se fala de outra coisa há semanas.
Os convidados, três mil ao todo, lotam os salões de beleza e as cabeleireiras se dividem em turnos para dar cabo de toda a demanda de mulheres enlouquecidas com a idéia de aparecer no Amaury Jr ou simplesmente dar de cara com um dos quatro astros da Globo contratados para dar o ar de suas graças e abrilhantar ainda mais o evento. Astro não é bem o termo. São dois pares de atores e atrizes que engatam uma novela na outra e nunca saíram nem em nota na Contigo. Todo mundo sabe das suas caras, mas não têm a menor idéia dos seus nomes e nem de onde exatamente eles são.

Como a depiladora se fez totalmente desnecessária, Izilda pôde tirar a sesta e acordar só agora.
Enquanto isso, os Souza Santos estão às voltas com os últimos preparativos. Plínio é bem catogórico com os garçons: “bem-vestidos = nossos convidados = Don Perignon; jecas e pobretões = família da noiva = Sidra Cereser”.

Entendido? Então repitam!

“Bem-vestidos = nossos convidados = Don Perignon!
Jecas e pobretões = família da noiva = Sidra Cereser!”


A igreja, toda revestida de hera e cabeças de anjo perfuradas nos cinco orifícios, de onde saem luzes de lâmpadas azuis, estava uma coisa indescritível. O padre, numa ação pouco católica, teve a mão devidamente molhada para que Lourdinha pudesse pôr em prática todos os delírios cenográficos com os quais sonhou desde que pariu Claudinho e que, com o passar dos anos, achou que jamais poderia concretizar.
No chão, tapetes com dizeres bíblicos perfilados até a altura do genoflexório em formato de coração almofadado para não machucar os joelhos dos pombinhos. No teto, uma grua que lembra de leve um trenó acomoda Agnaldo Rayol, um microfone de pedestal e, surpresa grata, Rosemary que Agnaldo chamou sabendo da admiração dos Sanchez Matosinho por este talento subaproveitado de nossa cultura popular. De lá, a dupla cantava, à capela, clássicos do repertório sacro como “Jesus Alegria dos Homens” e “Amigos Para Sempre”.

Quando os Sanchez Matosinho adentram o território sagrado, o silêncio grita. Três mulheres, uma delas visivelmente problemática, vestidas de shantung pêssego com casquete e bolerinho, mais um rapaz igualmente problemático em um terno de cor, corte e brilho suspeitos, mais um cadáver em forma de velha dentro de um vestidinho infantil todo rendado e amarelado, devidamente penteado, maquiado e perfumado, formam uma visão dos infernos.
Agnaldo desafina, Rosemary cambaleia e a grua range. Todos olham para cima, desviando (graças a deus) a atenção dos enviados de Proteus.
Com todos em seus devidos lugares, Agnaldo respira fundo e passa a evocar os primeiros versos da Ave Maria de Gunaud. Rosemary, ainda pasma, prefere se ater à coreografia religiosa que criara em casa para impressionar os convidados que, acreditava ela, seriam de categoria.
Quando a porta se abre, adentra o Plínio de braços dados com a Lourdinha e esta, espertamente, percebe nos rostos dos convivas, uma tensão misturada com nojo e escárnio que a faz fechar a cara no ato. Ao passar pelas Sanchez Matosinho todas de shantung pêssego a escorar aquela que deveria estar morta e enterrada, a socialite dos confundós do judas tem um acesso de asma que faz com que toda a primeira fila se levante de preocupação.
Por conta dos tapas especialmente fortes que Plínio desfere contra sua digníssima, tudo volta ao normal.
Claudinho caminha nervoso até o altar e seus pêlos não ajudam em nada para que ele pare de transpirar feito vodca no freezer.
Este é um momento de doce revanche para Socorrinho que, obviamente, percebe o ódio no olhar da Lourdinha em cima dos trajes de cortina velha em seu corpo e nos das suas: “Pelo menos não temos mais um macaco em nossa família. Isso agora é exclusividade do lado de lá. Hahaha!’, pensou maldosa.
E Agnaldo continua a judiar do gogó ao lado de uma Rosemary verde de labirintite prestes a vomitar em todos os que lá embaixo estão. Felizmente isso não acontece e a cerimônia continua.
Izilda surge na contra-luz da entrada da igreja, linda e lisa. Seu vestido parece ser a única coisa sensata do evento, mas toda a boa intenção é engolida pelo summer branco de seda e cetim de seu pai, aquele que sabiamente a falecida Miquelina chamava de “pobretão da boca do lixo”.
Bem. Como a Rosemary não tem o que vomitar porque está sem comer há doze horas, a noiva chega ao altar sã e salva. Entre uma pausa e outra para que Agnaldo faça juz ao cachê que, sozinho, custou mais que toda a festa, o padre que já demonstrara ser pouco católico, passa a flertar ora com o Modesto (muito bem apessoado num terno risca de giz, agora que encontrou a alegria de viver), ora com o Johnny (também muito bem apessoado num terno idêntico).
Em olhares cúmplices, o casal sorri já prevendo qual vai ser a farra da noite. “Será que o coroinha também participa?”, pensam os dois ao mesmo tempo.

26.
Entre um gole e outro, os noivos estão excitadíssimos com tantos entes queridos prestigiando o enlace. É certo que a maioria dos presentes nem um nem outro conhece, mas não importa: a festa está um sucesso.
Música ao vivo com a orquestra do Maestro Zezinho e seus metais em brasa embalam os casais de todas as idades. Toda a sociedade vale-paraibana está presente e com o queixo caído, como sempre desejou a Lourdinha que, por sinal, é a mais chamativa com seu vestido brocado dourado sobre a pele igualmente dourada, graças ao bronzeamento artificial intensivo incluso no dia da sogra que custou uma fortuna.
Um pouco menos chamativo, mas muitíssimo mais medonho, é o trio de desprovidas em shantung pêssego. Como bem previu a Socorrinho, não adianta postura e altivez; se o vestido é de quinta, o vexame é inevitável.
Humilhadas pelo esnobismo da elite caipira, as Sanchez Matosinho circulam pelos jardins só preocupadas em não mostrar os sapatos rotos e de péssima procedência. Ô dó!
Pior que os pisantes do trio, só o da bem-intencionada Rosiclair que faz o que pode para fugir das vistas da ressentida Socorrinho. Constrangida com os constantes encoxamentos do ficante Isidoro, Rosi não sabe se esconde o amante ou exibe orgulhosa os sapatos vagabundos. Ingênua a ponto de acreditar nas palavras da prima Lourdinha que, naquele mal-fadado jantar disse que uma mulher do porte de uma Rosiclair pode até calçar um Dunes xumbrega que estará fazendo bonito, a atual presidente da “Barbosa & Matosinho Associados S/A” vai mais além e, acreditando no seu taco, comparece à festa sobre um legítimo par de curvim da Romão Calçados.
Mas discutível mesmo é a presença discreta, porém incômoda de dona Miquelina, agora em rigor-mortis, o que faz o vestidinho de primeira comunhão cair melhor no corpinho arroxeado.
O cadáver embalsamado não passa desapercebido, mesmo estando a maior parte do tempo sentado e com o olhar parado no nada. Os menos avisados páram, cumprimentam e até beijam as bochechas da finada senhora sem notar nada de estranho. Nesta lista está a desmiolada da Jussara Vaso Ruim (née Mijamija) que desfila pimpona entre os convivas aos beijos e abraços com sua nova namorada travesti operada.
Só o fato de estar se relacionando com um homem de nascença dá uma segurança extra à atual ex da noiva, que só vendo para crer.
Os pais do noivo já estão bem mais soltos, depois de cinco doses de cowboy e nenhuma gafe imperdoável no cardápio, por enquanto.
O brocado dourado da Lourdinha já apresenta um tom mais ocre por conta do suor excessivo da anfitriã que simplesmente desbotou o Lacroix “autêntico” pago em duas de quinhentos numa boutique suspeita da capital.
Tio Modesto aproveitando o discurso aparvalhado do Dagmar, trata de sair de fininho com o namorado Johnny (este um pouco passado com a audácia dos Sanchez Matosinho em trazer o presunto da Miquelina vestida e perfumada) e o padre safado louco em levantar a batina e se refestelar em luxúria homo-erótica.
Três horas depois, Ismênia –a retardada- flagra o menage atrás das bromélias e sai aos berros: “Que mundo é esse? Que mundo é esse?”.
Um pouco antes da hora do bolo e do tradicional arremesso de buquê, Rosemary -que há tempos não era convidada para um rega-bofe daquele calibre e, por isso, se voluntaria para ser crooner do Maestro Zezinho, dá início ao ponto alto da festa.
Com os olhos semi-cerrados começa a entoar:

“Paixãaaao!
Leve a minha vida
E essa coisa linda
Que é viver só de …
Paixãaao!…
Melhor do que dizer se
É poder dizer sim
E viver só de…
Paixão, paixão, paixãaaao!!!”

Ovacionada pela multidão que havia se esquecido da delicadeza que é esta pérola de seu vasto repertório, Rosemary, agora tomada de uma força maior, gira no palco e muda de voz. Visivelmente mais aguda, a “Dalida dos trópicos” provoca risos em alguns ao se mover tal e qual a Miquelina dos áureos tempos.
Após segundos de puro suspense, o espírito de Miquelina se manifesta através da famosa e diz:
“Izildinha, minha flor! Pensou que eu iria perder esta festa linda? Mas nem por mil caralhos! Aliás, três deles estão na maior farra lá atrás das bromélias, mas isso não é importante. O que eu quero dizer é que o meu presente já está materializado e prontinho para ser servido. De modo que, antes de cortar o bolo, eu peço que os pombinhos se dirijam até o meu antigo corpo e, munidos de uma faca bem afiada, abram a minha antiga barriga. Lá dentro vocês encontrarão o mimo que eu preparei para vocês, meus queridinhos. Agora eu vou embora porque senão a Rosemary não vai aguentar o tranco, e eu quero que ela cante “Paixão” muitas vezes ainda esta noite. Até mais, meus amores, um beijo e muitas, mas muitas felicidades na vida nova que hoje se inicia. Adeus!”.
Dito isso, Rosemary cai para trás aplaudidíssima. Estrela que é, levanta num pulo e agradece comovida a multidão.
Curiosíssimos, os noivinhos se dirigem até o cadáver distintíssimo da velha e, um tanto constrangidos, abrem num só golpe seu ventre flácido.
Qual não é a surpresa de todos ao ver lá de dentro sairem docinhos reproduzindo os órgãos internos da matriarca: baços, fígados, duodenos, intestinos grossos e delgados, todos finamente confeitados no mais delicioso marzipã já degustado por todos da região.
Com lágrimas caindo no rostinho maquiado, Izilda se recorda dos bons tempos com a avó querida e manda um beijo para o céu.
De lá de cima, um pardal solta um trinado de alegria.
Na hora do buquê, as moçoilas que estão à procura de um amor como o de Izilda e Claudinho se postam à frente do palco. Ao som do terceiro bis de “Paixão”, Izilda finalmente arremessa o gordo maço de antúrios que vai parar no colo de ninguém menos que Jussara “Vaso Ruim” (née Mijamija).
De volta à velha forma, a sapata cai numa gostosa gargalhada suscedida de um longo jato de urina que forma um belo efeito de veludo molhado na sua calça cotelê. A noiva, num misto de saia justa e ciúme fora de hora, abre um sorriso amarelo e deseja à antiga amante boa sorte junto à namorada operada.
Com nacos generosos de bolo de damasco com cobertura azul na boca, os convidados se preparam para ir embora e tecer comentários maldosos no carro de volta para casa.
Na saída, uma longa fila de três mil burgueses com o bucho cheio espera sua vez de beijar e bater nas costas dos noivos que, apesar de exaustos e inchados, se despedem impávidos com um sorriso engessado na cara e uma cesta enorme de bem-casados à tiracolo.
Para cada um deles (os burgueses, e não os bem-casados), Claudinho e Izilda Sanchez Matosinho Solimões Souza Santos, agradecidos, repetem incansavelmente e em uníssono:

“Ah, já vai? Comeu o bolo?! Que bom que você veio! Ficamos muito felizes com a sua presença, obrigado!”



FIM