terça-feira, fevereiro 13, 2007

ato de fé (conto tiririca)



1.
Tenho 35 anos, me chamo Henrique e não gosto da minha vida.
Há dez meses, tentei matar um cara. Não consegui e nem desisti. O cara era um idiota. Roubou minha mulher e depois meus filhos e minha casa. Tive que vender o carro pra pagar os advogados e me livrar do processo que o cuzão meteu nas minhas costas. Por conta disso, odeio minha mulher. Me trocar por um mentecapto? Ok. Me deixar sem os filhos? Caguei. Ser conivente com o pulha e armar uma arapuca pra mim bem dentro da minha casa da qual fui sumariamente expulso? Vagabunda!

Hoje foi um dia terrível. Não trabalho há uns 3 meses. Pedi as contas. Trabalho assalariado definitivamente não é pra gente como eu.
Passei horas deitado no chão, olhando pro teto, pensando em modos infalíveis de me vingar.
Estou doente, mau-humorado e com ódio no coração.

Meus filhos são pequenos. Tenho medo de que eles cresçam e se esqueçam de mim. Tenho medo mas isso não quer dizer que me importe de fato. Só não quero duas criaturas que me desprezam soltas no mundo. Só isso. Tenho pensado muito a respeito. A merda é que toda vez que tento me aproximar, a mãe entra em pânico e os nanicos choram. Surtam toda vez que olham pra minha cara. Dá vontade de esbofetear a cara de cada um deles só pra chocar a vaca parideira e mostrar de uma vez por todas quem é quem nessa história imunda. Mas me contenho porque também não quero duas criaturas com asco de mim soltas no mundo. Por outro lado, não posso parecer vítima demais porque realmente não saberia o que fazer com duas criaturas que dependem de mim soltas no mundo. Trocando em miúdos, ter tido essas duas criaturas foi um erro. Ter me casado com essa vadia, outro pior.

Quando a gente se conheceu, éramos dois estúpidos. A diferença é que com o passar dos anos, eu me transformei e ela não. Passei da natureza “estúpida” pra natureza “looser”. Adoro essa palavra. Estrangeira que sintetiza perfeitamente a nossa realidade mediana. Sou um estúpido que virou “looser”. Já a vadia em questão, apenas evoluiu. Como todas as estúpidas, cresceu e virou uma orgulhosa sub-burguesa. Amontoa tanto diploma quanto celulite, porque gente estúpida se entope de comida cara e gorda enquanto acha que pode aumentar o número de neurônios de suas cabeças fracas. E pobre terceiro-mundista não se relaciona com comida boa como os franceses, por exemplo. Terceiro-mundista quando descobre como é boa a comida gorda e cara, come tanto que tudo vai parar nas coxas em forma de banha molenga, mas eles acreditam piamente que tudo isso vá parar é no cérebro. Talvez vá mesmo. Isso explicaria o porquê de tanta gente estúpida reclamando de prisão de ventre. Essa gente não caga porque não sabe diferenciar as coxas do próprio cérebro e, provavelmente, o cérebro do próprio cu.
Retomando o passado: dois estúpidos recém-saídos das fraldas se conhecem e fazem o desfavor de se apaixonar acreditando que o amor pode tudo. Pode nada. Amor não é pra todo mundo. Gente feia, por exemplo. Pra que insistir em reprodução? Sim, porque amor na cabeça estreita dessa gente tem que ter reprodução. Se ainda fossem estéreis, aí sim, dava até pra acreditar que deus, ou o que for, é favorável ao amor indistinto. Mas não. Parece que gente feia, por se assemelharem naturalmente a ratos, têm uma facilidade tamanha de reprodução que beira o grotesco. Não dá pra aceitar.
Retomando de novo: nos conhecemos, nos apaixonamos e sim, nos reproduzimos. Não que fôssemos feios, longe disso, mas repito: éramos estúpidos de gritar de ódio. O que dá na mesma porque estupidez é tão perigosa e ofensiva quanto a mais medonha das criaturas.
No começo era ótimo, claro: a ignorância sempre foi o segredo da felicidade. A coisa deu pra degringolar quando eu comecei meu processo de transmutação, já que todo ‘looser’ é um cínico de mão cheia. E cinismo só brota em mentes brilhantes. Agora, o ‘estúpido evoluído’ é um limítrofe: transforma merda gorda em neurônios e se julga melhor que os outros por isso. E ai de quem discordar dessa superioridade: vai escutar um rosário de teorias fundamentadas no nada brotadas de seus neurônios mancos.
Com os anos, nossa vida foi se tornando um transtorno. Eu cada vez melhor e ela cada vez mais tacanha naquela ânsia de acumular experiências dispensáveis. Assim não teve jeito. Ela arranjou um amante. Aquele mesmo. O pulha, o mentecapto, o que eu tentei matar e falhei.

Hoje de manhã me encontrei com o advogado. Gosto dele. Sujeito bonachão que manda arrancar a unha dos que não colaboram, sabe? O que ele disse me deixou animado: “Esses filhas da puta vão se fuder tanto, mas tanto, que vão pedir pelamordedeus pra gente ter misericórdia e se contentar só com toda a grana deles”. Sacou?
Vou ficar rico e gozar o bom da “sub-burguesia laqueada escrota” sem ter que abrir as pernas. E ainda vou fazer um enorme favor àqueles dois escroques: vão virar gente, finalmente. De hipócritas a gente de verdade: um salto e tanto. Sou um poço de bondade, acabo de descobrir.

De volta pra casa, tomo um banho bem quente –um hábito salutar que adotei desde que fui obrigado a circular como pedestre nesta cidade de merda. Qualquer cidadão que mora em algum buraco que se julga cosmopolita em algum ‘paiseco’ subdesenvolvido sabe do que eu estou falando. É uma medida profilática que nada tem a ver com esnobismo ou qualquer outro adjetivo que os equivocados entendem como ofensa.
Como é feia a nossa gente, não? Nossa, não. Esse povo tupiniquim desdentado, achatado e mal-educado. É impressionante como a falta de civilidade chega a níveis impensáveis aqui neste cafundó. Como ignorar que a simples presença dessa gente nas ruas agride todo e qualquer direito do cidadão pagador de impostos? A postura, as vestes, o cheiro, tudo agride e ofende. Nada presta. Enquanto não baixarem uma lei que obrigue os que ganham menos de cinco salários mínimos a só circular de uniforme em locais públicos, as noções de respeito ao próximo estão suspensas. Quem anda nas ruas como o brasileiro anda deveria chafurdar no estrume até se dar conta de que o feio e o sujo atrapalham, sim, a coletividade.

No banho, imagino como seria recuperar o que é meu de direito e ainda lucrar um bom montante apenas mentindo no tribunal. Mentindo não, distorcendo. Sempre fico pasmo com o atalho eficaz que é a mentira. Tudo fica tão mais fácil e rápido quando se mente que é impressionante como ainda existem tantas pessoas reticentes em relação ao uso de uma boa lorota. Que mal há em modificar um pouco a realidade das coisas se a realidade em questão é a sua? E se, ainda por cima, isso resolvesse de uma vez por todas o negócio de vingança que atravanca minha vida? Ou alguém realmente acha que eu gosto de alimentar esses sentimentos vís? Eu lhes respondo: não me agrada em nada pensar mais nos outros do que em mim, mesmo que sejam pensamentos aniquiladores de meus desafetos. Portanto, acredito ser uma perda de tempo cultivar amigos. Quiçá inimigos.
Saio do banho com uma vaga idéia do que fazer pra matar meu ócio até que esse teatro infernal acabe e eu volte ao lugar de onde jamais deveria ter saído: minha tranquilidade monástica. Assim sendo, vou contar meu drama tim-tim por tim-tim.


2.
Nasci bem. Tive uma infância abastada e polida. Desde pequeno aprendi que contar vantagem sobre si próprio é falta de educação. Acho que vem daí a dificuldade em me decidir se quero que o sistema exploda ou caviar russo. É claro que eu quero caviar russo, mas tem uma chave dentro de mim que, nos revezes, faz com que eu mude o discurso e diga coisas em que não acredito.
Como agora, por exemplo, na minha atual conjuntura -abandonado, fudido e mal-pago.
Nossa família foi perdendo o poder de fogo até que, na última década, passei a comer o pão que o diabo amassou, literalmente. Só não passei fome porque o diabo amassa comida demais por aí, é só saber ficar de quatro e lamber o chão.
Frequentei bons colégios que me garantiram o embasamento que tenho hoje pras coisas fúteis e mesquinhas da vida. Acreditava que todos nascemos bons e generosos mas, uma vez matriculados em escolas medíocres, ficamos condenados a meia dúzia de valores duvidosos que só são bons pra essa gente que abre escola e têm a pretensão cretina de achar que podem formar cidadãos- eles que se atenham a seus filhos e brinquem de nazismo em família no aconchego de seus lares! Mas, enfim, meus pais falharam e agora é tarde demais pra lamentar o que quer que seja.
Nesses antros educatórios, criei amizades que me ensinaram muito sobre relações humanas. Aprendi que a teoria acima é furada e que tem gente que já nasce ruim, hostil e sádica. Crianças são todas ruins, hostís e sádicas, mas umas mais, outras um pouco menos. Eu me considerava exceção. Nasci bom, tenho certeza, mas fui tendo que me adaptar a essa realidade canina e, sem me dar conta, já era pior que todos eles. Percebi isso quando fiz chorar pela primeira vez um sujeito torto. Uma sensação de poder e controle extraordinários. A coisa do fazer chorar por si só não garante satisfação porque, convenhamos, tem uma subcategoria humana que só nasceu mesmo pra chorar. Agora, tirar lágrimas de uma criatura que não tem o dom pra coisa, é maravilhoso. A pessoa é pega de surpresa e, mediante palavras afiadas selecionadas a dedo para serem expelidas por nossa boca assassina, BUM!, desanda a chorar feito bezerro na fila do abate e isso, acreditem, é melhor que um orgasmo.
Nessa fase, andava muito com um indivíduo chamado Sérgio. O achava inferior só por ele se chamar Sérgio. Sérgio –quem em sã consciência coloca no filho o nome Sérgio? Quantos Sérgios a gente vê espalhados por aí? Chamar Sérgio é como ter um carro desses palio, chevette ou coisa que o valha. Nada te diferencia do ‘Sérgio Coisinha Feia de Jesus’ lá da Vila Paçoca. Quer dizer: qualquer um pode ser você. E isso é tenebroso.
Esse Sérgio era o que eu tinha de mais próximo a um amigo. Frequentava minha casa e até compartilhava algumas idéias acerca da vida. Com o passar do tempo, fui me enchendo dessa pecha de ‘Zé Povinho’ que ele, na verdade, não tinha, mas que eu não conseguia abstrair por causa do nome ordinário. Não o despachei totalmente porque era minha única companhia, mas fui esfriando, esfriando até que um dia ele disse: “eu também não gosto do meu nome, prefiro o teu. Aliás, eu só venho aqui porque a tua casa é melhor que a minha. Se não fosse, nem te olhava na cara. Você é meio idiota”.
Fiquei besta. Admirei a sinceridade, mas fiquei puto mesmo assim. Deixei de convidá-lo a colocar seus pés proletários nos meus domínios por uns vinte dias. O que me mata é que EU o procurei de volta. Senti sua falta, ou melhor, senti falta de companhia. Ele voltou mais humilde –o que não deixa de ser irritante, mas naquele caso isolado, até gostei. Ficou queito e engoliu a seco alguns comentários desagradáveis que fiz de propósito. Infeliz.
Isso durou uns cinco anos até que meus pais tiveram a pachorra de falir. Não sei como e nem me interessa. Me vi em maus lençóis, tive que baixar a crista e mudei de escola. Fui pra uma em que Sérgio era artigo raro, em compensação o que havia de nomes impronunciáveis terminados em “mar”, “ete”, “ildo” me reviram o estômago até hoje. Lá não fiz amizades e, por incrível que pareça, nem senti falta de companhia. O Sérgio, notem o desplante, deixou de me procurar. Cortou relações e nunca mais o vi.
Desse período de trevas, a única coisa que trago comigo é a vadia da minha mulher. Era pobre, descuidada e ignorante. Mas tinha um quê de fibra e uma inteligência bruta que me conquistaram. Pelo menos, por hora. Nunca teve nada e, pra quem que nunca teve nada, até que não era completamente chucra. Demorei um tanto pra engatar o namoro mas com o tempo concluí que não havia nada melhor naquele lugar. Seu nome, prefiro não revelar por vergonha.
Conversávamos sobre tudo e foi ela que me fez questionar pela primeira vez os conceitos da vida –a coisa do sistema versus caviar russo que já citei. À essa altura a chavinha já estava acionada e eu juro que estava convicto de que a pobreza era linda.
Nos casamos em um ano sob as bênçãos dos nossos pais, aqueles dois pares de pé-rapados que não tinham moral nem pra abrir a boca na tentativa de evitar a ruína que era aquele casamento.
Eu, em pleno juízo, jamais permitiria uma coisa daquelas. Casamento é muito sério, desperdiçá-lo com bobagem é pecado.
Os primeiros anos foram bons. Eu mais reclamava do que agia, mas ela não. Tinha uma gana de crescer que me deixava em êxtase.
Passávamos fome juntos e eu nem ligava. E tinha o sexo.
O problema surgiu quando ela começou a crescer de fato. Ela insistia na coisa dos estudos e da formação profissional e toda aquela ladainha de gente que não sabe direito das coisas; eu só dizendo que aquilo tudo não valia o esforço e que era melhor ela grudar em algum poderoso desavisado e virar uma espécie de “frasqueira”, sabe? Aquele ser que vive atrás de um outro mais estrelado e que não lhe deixa faltar nada: água, celular, modess… Daí vai conquistando a confiança, vai fazendo a caminha ao mesmo tempo e, quando menos se espera, nhac, vai e toma tudo o que é dele. Pra mim, isso sempre pareceu muito mais rápido e seguro.
Ela trabalhava em algum muquifo desqualificado de dia e estudava à noite em algum outro muquifo desqualificado. Comecei a ficar tenso com a situação e quase entrego os pontos quando a infeliz vira e diz que “acha que está grávida”. Ah é? Acha? Então que vá ter certeza primeiro e depois me amole. Fiquei possesso. E com razão.
Uma semana depois, a certeza. Lembro que pensei: “agora fudeu”. Mas os nove meses passaram e nem foram tão traumáticos. O bebê nasceu e, se não fosse o choro insuportável, nem me dava conta de que havia uma criança naquela casa.
Ah, a casa. Como notaram, não tinhamos a menor condição de morar em outro lugar que não fosse debaixo da ponte, mas havia essa casa que era do pai dela. O pobre. A casa era, claro, igualmente pobre, mas era deles e eles estavam dando pra gente. Olha como são as coisas: meus pais que sempre me cobriram de luxo, riqueza e sabedoria, não podiam me ajudar nem com um trapo velho; meus sogros, malditos velhos ogros, nos davam de bom grado aquele pedaço de subúrbio. Não sei como não esganeci de raiva. Ponto pra mim e meus nervos de aço.
Morávamos longe e muitas vezes tinhamos que ir a pé ao centro porque não havia dinheiro pro ônibus. Foi uma época difícil mas otimismo era meu nome naqueles dias. Se tem uma coisa da qual me arrependo na vida é ter sido tão patético em acreditar que felicidade era aquilo. Como é que levar a vida de maneira capenga pode ser felicidade? Felicidade é gente cheirosa, é chegar sentado à algum lugar e, principalmente, dormir em paz sem uma criança a atazanar os sonhos com gritos e choros sem fim. Quando o mais velho atingiu uma idade em que finalmente as coisas pareciam voltar ao básico do suportável, eis que surge mais um girino na barriga dela.
A carreira da ingrata tava indo de vento em popa. Estava feliz a cretina que dava até úlcera. Inclusive, por conta de tanto êxtase da parte dela, todos os enjôos e vômitos crônicos, quem teve dessa vez fui eu. Ela irradiava felicidade. E eu expelia bilis a cada minuto dessa gestação dos infernos. Inclusive, enquanto dei entrada no hospital duas vezes por problemas intestinais, duas vezes ela foi promovida. Agora atendia pela alcunha de GERENTE DA CASA DO CARALHO A QUATRO. Gerente, vulgo sub-chefe. Coisa intermediária entre o poder e a ralé! Recheio de sanduíche de quinta.
Ela voltava pra casa inchada, barriguda e eu bancando a ama seca do pirralho maior. Aquele espírito que todo mundo fala que baixa quando a gente vê a cara do filho, eu não recebi. Devo processar quem por isso?
Simplesmente não tenho o dom pra coisa. Os dias dentro daquela casa nos cafundós do judas com o pirralho maior e sem ajuda dos meus pais falidos e nem a dos pais horrorosos dela, eram o inferno na terra. As noites conseguiam ser piores. Brigas homéricas e choros completavam minha penitência por algo que não cometi.
Com o salário de GERENTE DA CASA DO CARALHO A QUATRO, ela milagrosamente conseguia manter a todos. Eu abominava essa situação, e não era nem pelo fato de ser sustentado pela mulher, afinal dinheiro é dinheiro, independente de onde venha-, mas pelo simples fato de que, a meu ver, não dava. Era pouco. Muito pouco, aliás.
A questão é que, apesar da miséria, ela conseguiu poupar. Não me pergunte como, mas ela fez um pé de meia.
E foi assim, no meio desse pardieiro, que meu segundo erro nasceu. Um menino gordo e pior que o primeiro. Histérico, gritava, mordia e não dormia por dias.
Na licença-maternidade, notei que ela recebia uns telefonemas estranhos e mudava de humor toda vez que isso acontecia. Ah, esqueci de dizer, mas o segundo girino era tão desagradável que ela teve depressão pós-parto ou arrependimento, como eu costumo dizer. Ninguém com juízo conseguia desenvolver ternura ou qualquer outro sentimento abnegado por aquela criança. O primeiro era chato, mas era simpático. Agora, esse segundo era o diabo. Não havia negociação. Protelei ao máximo as doses de vacinas obrigatórias pra ver se algo acontecia e ele empacotava. Pensava que se isso tivesse que acontecer, que fosse logo enquanto era irracional como um cachorro. Porque depois não ia ter coragem. A gente pega amor ou se acostuma com eles e pra despachar é complicado. Então, pelo bem de todos, fiz o que pude pra reparar o erro. Não deu em nada. Hoje eles têm idade suficiente pra não gostar de mim e o fazem sem cerimônia.

A suspeita de que ela me traía me deixou obcecado. Não pensava em outra coisa a não ser flagrá-los, agredi-los e me vingar de uma maneira bem sórdida. Suicídio me parecia a melhor delas. Todo mundo já deve ter pensado em se matar pra se vingar de alguém que lhe fez mal; a idéia da culpa eterna sem solução pra quem fica é excitante, mas sempre gostei demais de mim mesmo pra levar a cabo uma coisa dessas. Homicídio também não era má idéia, a não ser pelo fato de que teria que ser um crime perfeito pra não apodrecer na cadeia. Isso seria impraticável. Por enquanto, só pensava no flagrante e na agressão física. A lei estava do meu lado, a coisa da honra manchada me protegia de qualquer desatino que pudesse cometer.
Num belo dia, resolvi: os dois têm que morrer. Pra isso, tinha que ter paciência e sangue-frio. Duas coisas que nunca me faltaram.


Do dia pra noite, mudei radicalmente a postura. Vesti a carapuça do corno manso e até estimulava a vadia a se encontrar com o amante que, até então, eu não conhecia.
Só fui ver a sua cara no dia em que houve uma festinha mequetrefe daquelas de seção de firma cheia de gente de terceiro escalão: secretárias, auxiliaries, supervisores e toda a demais corja que leva essas empresas horrorosas nas costas. A razão da comemoração? Outra promoção da vaca que agora atendia pelo nome de guerra de GERENTE SÊNIOR DA CASA DO CARALHO A QUATRO. Bando de infelizes trajando crepe de seda em tom pastel; deselegantes a beber vinho de garrafa azul como se fosse o néctar dos deuses. A famosa ‘máfia classe-média branca’ que consome tomate seco, rúcula e acha que tá fazendo bonito.
Pois eu fui à tal festinha, bebi da garrafa azul em copo de plástico, comi canapê de tomate seco e agrião comprado por engano e fui falso até à alma. Sorri, cumprimentei um por um e dei parabéns à vadia. De repente, eis que surge ele: a besta do adultério. Mais baixo que eu, mais gordo que eu, incoparavelmente inferior a mim. Certamente que ficou constrangido com a minha presença, mas disfarçou bem e até me cumprimentou, me parabenizando por tabela. Tinha a voz um tom acima do suportável daquelas que a gente tira o sarro na época da escola. Com certeza foi uma criança irritante. Aliás, ainda mantinha traços infantis: bochechas proeminentes e rosadas, além da franjinha APAE. Fiquei me perguntando “que tipo de mulher se interessaria por um homem que tem cara de criança retardada? Praticamente uma aberração? A minha mulher, é claro. Por isso eu digo: não basta melhorar de vida, se você não tem berço, seus critérios pela vida ficam irremediavelmente comprometidos. É a única justificativa que eu encontro pra ela ter fornicado comigo e com aquele ser demente na mesma encarnação.
De longe fiquei a observar os dois. Não queriam, de forma alguma, evidenciar nenhum tipo de intimidade. Casais em pecado deveriam saber de uma vez por todas que disfarçar é pior que assumir. Tá na cara que estão apaixonados e ficam trocando olhares de cumplicidade, o que só serve pra irritar quem está de fora. Principalmente se o de fora em questão é o marido traído.
À primeira suspeita de que a vaca não estava sendo correta comigo, eu já sabia que o que sentia por ela não era e nem nunca foi amor. Era mais uma conjunção entre a minha solidão e a disponibilidade dela num momento de fraqueza. Caí em mim porque nunca a enxerguei com a cegueira de quem ama de verdade. Sempre fui muito lúcido a respeito de seus defeitos, principalmente os físicos. A achava feia e desengonçada quando a conheci; continuei achando enquanto éramos uma família unida e feliz, por que não?; e ainda hoje a considero feia e desengonçada, agora com o agravante de ser também velha e filha da puta. Eu a odeio.
Voltando à festinha dos horrores. Uma hora eles se entregaram e trocaram um selinho atrás do arquivo morto. Eu vi. Se eu tivesse uma máquina, meu álibi estaria garantido e eu teria passe-livre pra cometer todas as atrocidades a que um marido traído tem o direito de cometer. Mas não, não levei máquina e o episódio só serviu pra aumentar uns gramas a mais de bílis no meu fígado.

Como foi que esse caso evoluiu para algo sério a ponto dela querer se separar de mim e me despachar pra fora do casebre do pai-ogro, eu não sei. Estava tão absorto em minha maquinação de vingança que não vi o amor dos dois merdinhas florescer. Na época eu trabalhava como fiscal do imposto de renda e me garantia extorquindo favores sexuais de umas sirigaitas que deviam dinheiro pra receita. Era um bom trabalho: ganhava bem e despejava meu stress em cima de umas vagabundas que não valiam nem o sabonete que perfumava suas bucetas azedas.
Com essa grana, comprei muitos ternos, sapatos italianos e um carro condizente com minha pessoa. Apesar disso, evitava revelar em casa a minha renda pra evitar inveja ou outra coisa negativa que eu sei que viria. Também não passei a contribuir com as despesas porque não me sentia inspirado a tal. Como a casa não era minha e não me agradava morar naquele buraco, concluí que investir dinheiro no cortiço seria desperdício. Portanto, também fiz meu pé de meia por um tempo, mas em prol de mim mesmo.
Com dinheiro no bolso e o saco esvaziado de porra, até pensei em me separar da vaca e não ter contato com ela e meus dois erros pro resto da vida, mas isso frustraria meus planos de flagrante, vingança e morte.


3.
Hoje foi a audiência com o juiz. Respondo pela tentativa de homicídio e nem alegar que eu estava sendo traído e por isso perdi a cabeça, eu posso. Não sei o porquê, mas o advogado disse pra eu ficar calado. Só respondo o que me perguntarem e, nem assim, poderei falar o que realmente penso. Ele tenta alegar que sou limítrofe ou algum outro adjetivo mentiroso e me garantiu que isso será bom pra mim. Apesar de, às vezes, achá-lo incompetente, foi o único que consegui pagar. Não creio que isso vá funcionar, tenho cara de esperto, não convenço ninguém como psicótico, sociopata ou a bosta que for.
Ordens do advogado: não se vista bem (ok, fiz o possível e, cá estou eu com um paletó que mais parece uniforme de segurança de loja popular); curve sua coluna para a frente e ande com os ombros caídos (passei uma tarde inteira fazendo de conta que era o amante da vaca); faça fisionomia de coitado, daqueles que apanham e não revidam (que nem você, pensei, mas engoli o pensamento).
Pronto, estou pronto pra esse juiz.
O juiz me pareceu de confiança. Pelo menos, altivo ele era. Relógio bom, cabelo bem cortado e cheirava a perfume caro. Fiquei mais tranquilo. Confio muito mais na parcialidade dos que sabem das coisas, do que na justiça daqueles que não têm por onde.
Fiz a minha parte. Respondi a tudo com um fiozinho de voz que mortificaria até uma mamba negra. Sou bom nisso. Disse que jamais seria capaz de matar um pernilongo que fosse e que, se agi violentamente, foi por conta de uma chavinha que gira quando estou sob pressão e me faz fazer coisas nas quais não acredito. Viu como uma mentira pode ser bem próxima da verdade? Dito isso, não me senti desconfortável nem tampouco criminoso.
Voltei pra casa e resolvi atazanar meus desafetos mais um pouco. Liguei pro cortiço deles e disse que queria falar com meus filhos. A vaca entrou em pânico e despejou uma série de desaforos que eu sorvia como se fossem balinhas de menta. Claro que ela desligou o telefone na minha cara, não sem antes dizer que eu não tinha mais filhos. Achei de uma audácia, aquilo. Oras, meu sobrenome aqueles bastardos vão carregar pra todo o sempre e ela me vem com essa de que eu não tenho direito sobre eles? Responsabilidade sobre eles, eu dispenso, agora meus direitos de pai exigo que sejam mantidos e respeitados. Ou ela acha mesmo que eu vou deixar aqueles equívocos que carregam o meu sangue nobre chamarem o molóide inferior de papai.

Enquanto pude, mantive meu cargo de fiscal. Era perfeito pra mim. Todos levantavam o rabo na minha presença e eu cada vez mais rico. Mas como tudo que é bom, isso também durou pouco. Logo vieram denúncias de abuso e outras baixarias, de modo que resolvi debandar antes que espirrasse alguma porcaria em mim. Continuei a morar em Calcutá –como era o apelido carinhoso que dei àquele subúrbio do cão, e voltei à minha vidinha de sempre: a de corno manso pronto pra dar o bote.
Me recusava a cuidar das crianças, então uma babá gordíssima dividia o teto comigo durante o dia. Imaginem como seria uma babá contratada com o dinheiro micho que a vaca ganhava como GERENTE SÊNIOR DA CASA DO CARALHO A QUATRO. Não pensem que insisto nessa tecla por despeito do dinheirinho honesto da minha digníssima ex. Não é do meu feitio esse tipo de sentimento. Posso ser um looser, mas nobreza nunca me faltou. Não perderia meu tempo a difamar a renda mensal da putana se não achasse realmente que aquela quantia beirava à esmola.
Aguentei a babá estoicamente e nem me incomodava com o fato da gorda falar errado com minhas crias. Na verdade, pouco me importava. Se o exemplo torto não viesse da balofa, com certeza viria por outra fonte, já que aquele lugar estava infestado de gente desqualificada que só mexeu num livro pra espanar o pó na estante da casa da patroa.

Numa noite, a vadia voltou pra casa e me comunicou que desejava se separar porque descobriu que amava outro homem. Eu disse que sabia de tudo e que não daria o divórcio nem sob tortura. Ela ficou besta. Falou que eu era um bosta e que se arrependia amargamente de ter me conhecido e se apaixonado por mim. Retruquei que sua memória estava capenga porque o seu passado não lhe dava outra alternativa. Era eu ou era o caritó, já que nenhum outro macho olharia duas vezes pra sua figura a não ser pra se certificar não se tratar de assombração. Ela partiu pra ignorância. Estalou um tapa na minha cara e eu respondi com um sorriso cínico. Ela ordenou que eu saísse da casa dos seus pais no ato. Casa dos seus pais! Hahaha! Barraco de gente desprovida, isso sim!
Fui parar num quarto de hotel cinco estrelas. Meus fundos de fiscal ainda estavam recheados e me garantiram alguns dias de gente, bem longe daqueles animais que graças aos deuses deixaram de ser meus co-parentes. Isso era um alívio! Praticamente um descarrego.
Bem tratado e bêbado como há muito não era, resolvi colocar meu plano em prática: invadir o barraco de Calcutá e passar bala em tudo que se mexesse. A vaca, meus erros e o amante incluídos.
Mas deixemos o dinheiro acabar primeiro pra tirar minha bunda daquelas almofadas sedosas em direção ao pulgueiro dos ogros suburbanos.
Não demorou a acontecer. Luxo é algo realmente pra poucos. E nem acho isso absurdo. Caso eu fosse rico de fato, odiaria ter que dividir meus mimos com gente flutuante como eu, por mais que minha essência grite que sou um esnobe de berço.
A arma eu já tinha; restava a coragem. Alguns goles de bourbon depois, lá fui eu com a cara, a coragem e o revólver em direção à família trapo.
Estava tudo escuro e, como já não andava em linha reta, tive dificuldade em entrar no casebre sem me fazer notar. Não enxergava um palmo na frente e acabei atirando em sabe deus lá o quê. Até hoje não sei em quem foi porque essa gente tem tanto rabo preso que, se leva um tiro, sabe porque levou. O que sei é que minha família e o amante continuavam vivos porque assim que escutaram o tiro, desceram em roupas puidas munidos de paus, cacos de vidro e outras armas brancas. Agora me digam: que tipo de gente têm essas coisas em casa pra numa urgência usarem contra seus inimigos?

Alguns sopapos além e fui levado de camburão até à delegacia mais próxima e, com prazer, mostrei meu diploma comprado que sempre levo dobrado na carteira pra uma eventual emergência. Noratam a diferença? Alguns carregam paus e cacos de vidro pra se defender, outros diploma universitário.
O delegado teve que engolir o documento e me encaminhou a uma sala que, se não era a vip de Heathrow, também não era a cela 2x2 cheia de crioulos estupradores lá do fundo do recinto. Chamei meus pais, os falidos, que pelo menos tinham poupado o suficiente pra minha fiança.
Me instalei no germinado dos meus progenitores que, comparado ao caos de Calcutá, mais parecia um resort e fiquei lá até o cafoninha-cara-de-bebê-mongolóide descobrir e mandar seus advogados atrás de mim. Estes eram tão patetas quanto seu contratante e me informaram, num discurso obscuro e entrecortado, típico de gente aparvalhada, que havia um processo contra mim por conta de tentativa de homicídio.
Aqui, uma pausa para esclarecimentos: o bebê sindrômico entendeu mal. Não invadi a casa da vaca pra matar o cidadão ‘bebê sindrômico’ especificamente. Queria matar alguém todos sem distinção. Isso já denota um equívoco da sua parte e uma raiva ainda maior dentro de mim. Agora é que quero mesmo que o infeliz faleça.
Mas como isso não me serve de defesa legal, vamos em frente.

Assim que souberam da natureza da minha prisão e do maldito processo, meus pais –outrora tão próperos e civilizados- parece que foram contaminados pela moral católica desse povinho medíocre e me expulsaram de seu germinadinho.
Restaram-me os trocados dos tempos de fiscal e meu ódio pra continuar em frente.
Custou mas achei um pardieiro menos desqualificado que Calcutá pra morar.


4.
Odeio admitir, mas um dia já me apaixonei. Uma daquelas paixões que a gente vê nos outros e sente asco, sabe? Não foi uma experiência que eu pretenda repetir, mais perdi do que ganhei e sofri mais do que me diverti. Uma perda de tempo.

A Silvia.
Era alguém à minha altura. Pensávamos igual, falávamos as mesmas coisas e não tínhamos aquele constrangimento típico de quando nos vemos obrigados a dialogar com gente que não sabe do que estamos falando. Ou vice-versa. Conhecimento pode vir de cima ou de baixo na mesma medida. Já aprendi muito escutando os serviçais. Nada que vá mudar a vida, só experiências desagradáveis que nos fazem repensar e parar de achar que bife de segunda é o fim da vida, por exemplo.
Com ela, eu até imaginava um futuro belo. Imaginava casamento, festa, viagens e até filhos. Todos lindos, ricos e esnobes.
A questão é que ela era pior que eu, em todos os sentidos, e me tratava que nem capacho. Juro que não me importava com os desmandos e até gostava. Quanto mais atrocidades ela fazia, mais eu me apaixonava e assim nossa relação caminhava pra um aparente final feliz. Isso foi na época gorda da minha vida. Meus pais ainda eram alguém e eu nem imaginava que pudesse haver vida aquém da minha existência.
Foram meses de amor até que ela morreu de overdose. Não sabia que ela se drogava e fiquei chocado com a notícia. Mais do que perder o amor da vida é a pena que dá quando alguém bonito morre. Dá uma sensação de desperdício, de ‘bem que podia ser outra pessoa menos interessante’. Todo mundo deve sentir isso quando alguém bonito morre, eu acho. Eu pelo menos não consigo manter a indiferença.
Levei algum tempo pra superar a perda. Estava tão acostumado à Silvia, éramos quase a mesma pessoa, unha e carne. Acho que morri um pouco junto com ela.
Nos dias seguintes, mal saía da cama. Passei por diversas fases: da completa prostração ao ódio irrestrito. A culpava pela minha dor -jamais havia sentido um desconforto tão grande, nem quando a filha da criada cuspiu na minha caneca de ouro. A sensação de agora era mais agoniante, a coisa da impotência, de não poder recorrer ao dinheiro do pai e subornar alguém que fizesse a diferença. A morte é revoltante e não havia alternativa a não ser odiar profundamente o cadáver que me deixou nessa sinuca.
Com o tempo fui melhorando e, algumas semanas depois, mal lembrava da cara da Sílvia. O que havia era uma sombra de lembrança, um sopro de memória que me garantia que ela era, sim, o grande amor da minha vida, apesar de não me lembrar do seu rosto.
Continuei a citar Silvia em rodinha de amigos e isso também começou a perder o interesse até que, finalmente, a esqueci completamente; a não ser quando esse assunto de grande amor da vida volta de vez em quando. Aí o nome Silvia vem à minha mente e eu repito essa história meio que por osmose.
E a cada vontade de matar a vadia e seu bebê-sindrômico, rezava pela alma da Silvia.


5.
O mundo que me perdoe mas eu fui criado pra hostilizar a classe média, não posso fazer muita coisa à respeito. Talvez essa ânsia da vadia em melhorar de vida devesse ser encarado com uma prova de amor. O fato é que se fosse essa a intenção, o intento flopou e jamais tal hipótese passou pela minha cabeça. Ela que tentasse ser um pouco mais convincente e perseverante. Desistiu muito cedo e arranjou um amante de quinta categoria. Acho até que parte do meu ódio vem dessa escolha equivocada de amante. Ser trocado por lixo não é nada lisonjeiro, baixou minha auto-estima e, juro por deus, isso tudo justifica completamente a minha obcessão por vendeta. Pura e cortante.


6.
Todos os dias escuto algum estranho dizer que devo me aproximar dos meus filhos. Que a infância passa rápido e que logo vão virar adolescentes e aí o sossego acaba porque eles vão nos odiar independente do que se faça. Filhos devem ser enganados desde cedo; sempre incutir nas suas cabeças que os amamos e que eles são a razão na nossa existência. Só assim eles terão um mínimo de consideração no nosso leito de morte. Na verdade, nós mesmos somos os culpados do futuro de merda que nos aguarda. Fazemos filhos que não queremos e criamos a expectativa de um amor incondicional da parte deles e é claro que isso não acontece. Como é que gente escrota vai parir filho decente? Eu não tenho essa ilusão, não bajulo esses cretinhos e não desejo piedade na velhice. Quero morrer só, sujo e faminto se essa for a minha sina.
Nunca quis ter filhos. Nem eu nem a vadia, e aborto só não chegou a ser uma hipótese real por causa do horror que a vadia tinha por cirurgia; assim, tivemos as crianças e até hoje não sabemos o que fazer direito com isso.
O modelo de pais que tinha em casa, se não era o melhor também não me fazia um sentir humano menor. Eles eram ricos e amorosos na medida que isso era possível. Trocando em miúdos, fui uma criança carente e mimada na medida certa. Recebia presentes pra calar a boca e sofria estímulos variados pra parecer inteligente na frente das visitas. Nunca os desapontei, pelo menos até eles me desapontarem primeiro. Fui um bom filho e o que recebi em troca foi privação e a lamentável incursão ao mundo dos remediados.
Por isso e muito, muito mais idiossincrasias do mundo cão, estava decidido a não ter filhos. Como é que um looser, cínico e pernóstico poderia educar satisfatoriamente uma criança sem prejuízo psicológico pra criatura? Sabendo disso, só tive a lamentar a paternidade. Não os odeio, talvez os despreze por antever que, no futuro, os dois serão tão ou mais odiosos que eu e que, por isso mesmo, também não evitarão a paternidade e serão responsáveis por mais outras tantas criaturas mal-amadas que infestarão esse mundo até que ele exploda.
Não nasci pra ser pai e não vejo isso como uma característica própria -ninguém nasceu pra ser pai ou mãe. A diferença é que sou honesto.

7.
A vingança só cresce dentro de mim. Tenho que machucar alguém.

Volto a tentar o homicídio; desta vez, com mais calma e parcimônia. Não sou bom com violência, armas, sangue, fluidos. Tem que ser algo limpo e de meu pleno domínio; se conseguisse fazê-los se matar seria ótimo; o crime perfeito que tanto busco nas minhas divagações -tortura psicológica, maldade extremada sem uso das mãos, altamente intelectual. Testar o limite da estupidez, fazê-los conviver direta e intensamente com a própria mediocridade. Fazê-los escutar a si próprios e nada mais. A morte viria sem dúvida. Fulminante e libertadora, como um prêmio pela proeza de se suportar por toda uma existência. Fabuloso. Acho que consigo.


8.
Jantei e fui meditar. Listei seus pontos fracos, um por um, e armei a utilização de cada uma dessas pequenas adagas da maneira mais certeira.
A questão da mediocridade que, ao meu ver, é o que mais gastura dá neste tipo de gente, infelizmente não é problema deles. Mediocridade é invisível pra quem a ostenta. O foco é outro. Talvez a cultura capenga, os valores rasteiros, a hipocrisia grosseira. E pra quem tem o telhado de um vidro tão fino, fica fácil ser agredido. Morte agonizada, indignante e sem um pingo de sangue. Assim deve ser com os estúpidos, assim será com aqueles todos. A vadia, o bebê sindrômico e meus dois errinhos.


9.
O embate.
Meu nome condiz com minha pessoa. Henrique é nobre sem soar pedante. Ninguém é repudiado por se chamar Henrique. É o que eu chamo de nome digno. Tenho orgulho e ostento meu nome como um brasão de família.
Toda vez que preciso ser apresentado, faço questão de dizer em bom tom: “Henrique, muito prazer”.
Mandei que me anunciassem, mesmo sabendo que não era bem-vindo. Caguei pro que eles pensam de mim. Têm medo do meu nome, já que asco nunca terão porque me chamo muito melhor que eles.
Henrique subirá de elevador social; Henrique entrará pela porta principal; Henrique pisará no tapete; reservem o melhor sofá para Henrique; Henrique deseja café e água nem morna nem gelada. Temperada; calem-se que Henrique se pronunciará:

“Por anos tive a delicadeza de me calar pra uma série de fatores por educação e piedade de vocês dois.
Tive até a generosidade de querer acabar com suas vidas pra que esse momento fosse poupado, mas vocês, obviamente, ignoraram meus gestos interpretando-os como grosseria ou desvario. Pois bem, chega de benevolência. Sou bom até certo ponto.
Você já foi minha mulher, não valorizou essa posição e me trocou por um ser notoriamente inferior, não sem antes me magoar e achincalhar a minha virilidade e honra. Teve o privilégio de parir dois filhos meus e nem assim se deu por contente; queria me ver por baixo, espezinhar os meus valores e ainda tirar algum por fora com essa idéia esdrúxula de processo por tentativa de homicídio. Aqui ninguém tentou matar ninguém, que fique bem claro; o que houve foi, como já disse, um ato misericordioso. Colocou meus filhos contra mim, mas lamento dizer que, cedo ou tarde, filhos se voltam contra pai e mãe invariavelmente, o que pressupõe que você acabou por me fazer um grande favor: jamais pegarei amor por aqueles dois, ao contrário de você que cuidou feito uma empregada dia após dia, desenvolvendo essa patologia chamada amor maternal e que te custará caro a partir da primeira decepção que aqueles dois certamente causarão. Vai sofrer em dobro todos os desaforos, desrespeitos e vandalismos como se fossem cacos cravados no coração. E eu, graças à sua leviandade, vou rir disso tudo, sem mácula e sem o menor arrependimento.
Quando eles te largarem na sarjeta ou, pensando com otimismo, num asilo fétido e decadente, que combinará perfeitamente com você, tente rememorar essas palavras de agora e pense em todas as atrocidades que você cometeu. Contra mim e contra seus filhos que ficaram sem a opção de escolher em quem praticar o sadismo inerente. Morra com essa culpa no coração e torça pra que o inferno seja bem quente pra aniquilar de uma vez essa sensação ruim de quem errou feio na vida. Adúltera.

E você, seu paquiderme desprezível: foi boa a sensação de roubar a esposa alheia, não foi? Ainda mais de um cara petulante e cheio das verdades como esse aqui com cara de otário, não foi? Concordo. Eu, no seu lugar, faria o mesmo. Só teria um pouco mais de amor próprio e escolheria alguém melhor, que realmente valesse o esforço e não esse arremedo de fêmea parideira que só atinge o êxtase quando coloca postas de salmão na boca.
Vocês se merecem. Vocês merecem cada característica desagradável um do outro; cada comentário raso embasado em nada sobre esses assuntos irrelevantes da semana; vocês merecem dividir as despesas do supermercado, o condomínio e a poupança dos MEUS filhos; merecem absolutamente tudo o que têm. Tudo!
Vocês já perceberam a insignificância dessa felicidade de vocês? Já se deram conta que essa vidinha ordinária vai se arrastar até o fim dos dias, caso vocês não tomem uma providência? Caso vocês não cortem o mal pela raiz e abortem esse futuro lamentável? Mas se a covardia prevalecer, também não há o que temer. A pobreza de perspectivas, vocês conhecem bem. Engordem muito, encham o cu de trocados, comprem uma casa “boa” no centro expandido, poupem pras crianças irem àlguma merda de faculdade paga e brinquem de serem felizes. Que eu, daqui de longe e do alto, vou rir tanto quanto meus pulmões aguentarem.
Sinceramente, HENRIQUE
Querem que eu repita?
HENRIQUE, HENRIQUE, HENRIQUE.


10.
Recebo a notícia de que os dois acabaram de morrer. Não por causa das minhas palavras, que superestimei, mas por uma piada do destino: se espatifaram dentro de alguma classe econômica em algum ponto turístico do fim do mundo. As crianças foram para os braços dos avós-ogros-malditos, mal-trajadas e mal-educadas a falar coisas de corar as professoras enfadonhas das escolas-butique por onde flanei. Caguei mais uma vez pra eles e pra essas bruxas velhas. Queo me ver livre de meus pequenos erros e da pensão. Não posso pagar e não pagaria mesmo se pudesse. Se é pra me odiar, que o façam com real motivo: não dou mais um tostão pra esses dois bostinhas.
Mas apesar de tudo, agora sinto um aperto no coração. Inimigos são melhores vivos do que mortos, agora eu sei. Penso até em ir ao enterro, seria simpático da minha parte.

11.
As coisas nunca são do jeito que a gente quer; pior, as coisas são sempre muito aquém do merecimento. A imagem dos dois patetas perdendo o viço, caindo em desgraça e explodindo no ar me alimentará os sonhos por anos até que eu esqueça de seus rostos.
Sempre gostei de fazer chorar os que não sabem chorar. Sem querer a Silvia e seu espectro me vieram à cabeça; nunca mais vou saber como ela era, mas não importa. O que eu preciso continua fresco na memória, que é a ciência de que um dia eu fui feliz, fiz troça da felicidade, abracei a desgraça e matei quem eu amava e quem eu odiava, mesmo sem ter a menor lembrança de quem foram. Tudo ficou pra trás; tudo é morto e enterrado.
Agora posso relaxar e ser verdadeiramente bom.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que nojo!

Anônimo disse...

Que pessoa mal amada, amou uma mulher que se chamava Silvia, que lembra silva, tipivamente nome de pobre hehehe ou mesmo Sérgio, enfim apesar de todo nojo do dircurso burguês admito que esse tem uma escrita muito foda e isso é a grande diferença entre os que escrevem para so outros leem e os que leem,não é o que se escreve mas sim como se escreve...fantástica contrução